“Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo”

No calendário litúrgico, os dias 14, 15 e 16 de setembro são o que poderíamos chamar “tríduo doloroso”. São três dias em que, provavelmente por coincidência, primeiro se exalta a Santa Cruz de Cristo, depois a memória de Nossa Senhora das Dores, e, por fim, São Cornélio, papa, e São Cipriano, bispo, ambos mártires. São Paulo diz aos colossenses: “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo em minha carne, por seu corpo que é a Igreja.” (Cl 1,24)

É claro que não se trata de alargar a salvação. Esta é completa em Cristo. Em Cristo, pela graça santificante do Espírito Santo, chegamos ao Pai e participamos da vida divina (Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1999). Também nossa redenção é completa em Cristo, que, sendo Deus, uniu-se à humanidade nascendo de uma Virgem, morreu em obediência ao Pai e inocente, castigado por nossos crimes, abriu as portas do Céu aos justos que o precederam, ressuscitou e, elevado ao Céu, elevou ao Pai a nossa natureza humana (Is 53; Jo 1,1-14; Rm 5,19; Cl 1,15-23; 2Pd 1,4; símbolos Apostólico e Niceno-Constantinopolitano; CIC 422-667).

O que fala, então, São Paulo a respeito do sofrimento humano? O beato João Paulo II nos explica muito bem, em sua carta apostólica Salvifici Doloris (23):

Aqueles que participam dos sofrimentos de Cristo têm diante dos olhos o mistério pascal da Cruz e da Ressurreição, no qual Cristo, numa primeira fase, desce até às últimas conseqüências da debilidade e da impotência humana: efetivamente, morre pregado na Cruz. Mas dado que nesta fraqueza se realiza ao mesmo tempo a sua elevação, confirmada pela força da Ressurreição, isso significa que as fraquezas de todos os sofrimentos humanos podem ser penetradas pela mesma potência de Deus, manifestada pela Cruz de Cristo. Nesta concepção, sofrer significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade. Nele, Deus confirmou que quer operar de um modo especial por meio do sofrimento, que é a fraqueza e o despojamento do homem e ainda, que é precisamente nesta fraqueza e neste despojamento que ele quer manifestar o seu poder. Compreende-se, deste modo, a recomendação da primeira Carta de São Pedro: Se alguém “sofre por ser cristão, não se envergonhe, mas dê glória a Deus por este título” [1Pd 4,16].

Ademais, se há “um só corpo e um só espírito” (Ef 4,4), se somos todos membros do Corpo de Cristo (Rm 12,4s; 1Cor 10,17) toda vez que alguém deposita em Deus sua esperança, é todo o Corpo de Cristo que se beneficia. Toda vez que alguém perdura na fé mesmo quando os sofrimentos o põem à prova, é todo o Corpo de Cristo que cresce. “O sangue dos mártires é a semente de novos cristãos”, disse Tertuliano. Essa é a comunhão dos santos.

É dessa solidariedade na Cruz que já o justo Simeão falava quando disse para Maria: “uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2,35). Assim podemos pedir a Deus: “Elevai-nos pela cruz até o vosso Reino!” (Liturgia das horas [LH], próprio da Exaltação da Santa Cruz, II Vésperas). Por isso pedimos a Deus que dê a sua Igreja, “unida a Maria na paixão de Cristo, participar da ressurreição do Senhor” (LH, próprio de Nossa Senhora das Dores, Laudes). Como diz São Paulo aos Coríntios: “Com efeito, à medida que em nós crescem os sofrimentos de Cristo, crescem também por Cristo as nossas consolações” (2Cor 1,5).

Pelo que tudo suporto por amor dos escolhidos, para que também eles consigam a salvação em Jesus Cristo, com a glória eterna. Eis uma verdade absolutamente certa:

Se morrermos com ele,
com ele viveremos.
Se soubermos perseverar,
com ele reinaremos.
Se, porém, o renegarmos,
ele nos renegará.
Se formos infiéis…
ele continua fiel,
e não pode desdizer-se.

(2Tm 2,10-13)

Repartir a sabedoria

Hoje é dia de comemorar São João Crisóstomo (c. 349-407), bispo e doutor da Igreja. Não teve medo de promover a reforma dos costumes, tanto do clero quanto dos fiéis. Recebeu a oposição da corte imperial e de inimigos pessoais, o que lhe rendeu duas vezes o exílio. Segundo a liturgia das horas, “a sua notável diligência e competência na arte de falar e escrever, para expor a doutrina católica e formar os fiéis na vida cristã, mereceu-lhe o apelativo de Crisóstomo, ‘boca de ouro’.”

No comum dos doutores da Igreja para o ofício das laudes (oração do início do dia, na liturgia das horas), lemos do livro da Sabedoria (Sb 7,13-14)

Aprendi a Sabedoria sem maldade e reparto-a sem inveja; não escondo a sua riqueza. É um tesouro inesgotável para os homens; os que a adquirem atraem a amizade de Deus, porque recomendados pelos dons da instrução.

Ao rezar o ofício, não pude deixar de lembrar de imediato as palavras de Cristo (Mt 5,14-16):

Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.

A sabedoria que Deus nos dá e que devemos repartir nos foi dada toda e diretamente por Ele (Jo 15,15):

Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai.

Que nossas obras e nossas ações sejam um compartilhar a sabedoria que Deus nos dá em sua Igreja, na vida dos santos e nos dons do Espírito. Que, nesse mundo que reduziu o homem à mera racionalidade, mas que não houve nem sequer o que a razão diz (Rm 1,18ss), possamos espalhar a sabedoria da fé!

Pelos políticos – intenções do papa para setembro

É com um pouco de atraso, mas, no fim das contas, em uma data muito propícia, que falo das intenções gerais do papa para este mês: pelos políticos. Hoje é dia de comemorar a formação política do Brasil, com seus percalços e suas conquistas, e é também mês de campanha eleitoral nos municípios. Tempo adequado para rezarmos pelos nossos representantes nos governos e casas legislativas.

“O que se exige dos administradores é que sejam fiéis”, diz São Paulo na leitura da missa de hoje (I Cor 4,2). Fiéis, é claro, àqueles que lhes conferem o poder da administração. Como na parábola do dinheiro emprestado (Lc 19,11ss), em que Jesus Cristo nos ensina que devemos trabalhar, administrando os dons que nos deu, para que venha o seu Reino a muitos, também os governantes, a quem confiamos a administração das coisas públicas, devem agir para a expansão do bem comum.

Mais especificamente, o papa ora este mês para que os políticos hajam com honestidade, integridade e amor à verdade. Deus é a verdade (Jo 14,6) e nos ama integralmente, a ponto de oferecer-se, na pessoa do Filho, pelo nosso bem (Jo 3,16). A verdade liberta o homem (Jo 8,32), e o serviço à verdade é o serviço ao desenvolvimento humano integral (Caritas in veritate, 9).

Rezemos, então, para que, no amor e na verdade, os políticos busquem o desenvolvimento de cada homem e de cada mulher, bem como da humanidade inteira. Que os eleitores, em especial nos municípios brasileiros, saibam escolher bem seus representantes, e que estes sejam bons administradores do bem comum. Que os governantes nos estados, no Distrito Federal e na República promovam a verdadeira realização humana. E que, especialmente no plano internacional, as “estéreis oposições de forças dêem lugar à colaboração amiga, pacífica e desinteressada, a favor de um desenvolvimento solidário da humanidade, onde todos os homens possam realizar-se” (Populorum progressio, 84). Amém.

Cristianismo, sempre perseguido

Acostumamo-nos a crer que é possível ser um cristão acomodado. (A princípio) não andamos pela rua com medo de sermos reconhecidos como cristãos. Quando alguém pergunta, até dizemos, um tanto embaraçados, qual a nossa religião. Justamente aí deveríamos ver que, mesmo hoje em dia, não é fácil ser cristão.

Em muitos países, a violência atinge graus extremos. Na Síria, entre as minorias que os rebeldes fizeram vítimas dos conflitos (forçando assim, senão uma aliança direta com o governo de Bashar al Assad, ao menos uma solidariedade, visto que também o presidente daquele país é membro de uma minoria, a dos islâmicos alawitas), entre essas minorias estão os cristãos, constantemente acossados. Em Israel, a violência também aumenta. No Paquistão, há uma “lei da blasfêmia“, propícia a todo tipo de abusos. Na Índia, pais maltratam e expulsam filha que se converteu ao cristianismo. No Laos, onde a constituição assegura a liberdade de religião, um homem foi preso por converter 300 pessoas à fé cristã. Mas, esses casos, por brutais que sejam, parecem distantes. Aqui no “ocidente”, com sua cultura de tolerância e liberdade, as coisas são diferentes. Na Inglaterra, por exemplo, pessoas são proibidas de usar crucifixos no trabalho.

Como disse acima, muitas vezes ficamos perturbados se nos perguntam qual a nossa religião. Isso acontece porque hoje existe uma cultura avessa a qualquer religiosidade externa – a religião é assunto privado, dizem. Assim, participar da Igreja seria um atentado contra a modernidade. E dessa modernidade somos vítimas, muitas vezes passivas. O primeiro passo que devemos dar é dizer sem constrangimentos: somos cristãos. Ao mesmo tempo, ajamos no amor e na verdade. A cada pequeno ato de caridade na verdade, estaremos agindo contra essa perversa ordem que tenta nos manter isolados, com uma fé confinada no indivíduo. Para sermos luz do mundo (Mt 5,14-16), não podemos nos confundir com as trevas.

A doutrina social da Igreja e as ciências

Quem se desse ao trabalho de ouvir atentamente a exortação do papa Bento XVI ao diálogo entre marxismo e cristianismo talvez se perguntasse: “isso é possível, a Igreja tem abertura ao conhecimento científico da sociedade?” A pergunta faria sentido, porque o marxismo pretende ser um conhecimento científico das relações sociais a partir de suas bases materiais. Por outro lado, a Igreja e os marxistas por mais de um século se estranharam, excluindo-se mutuamente, em razão de suas escolhas epistemológicas.

É preciso que se diga: marxismo e teologia são abordagens muito diversas da realidade. Uma parte do material, tomando-o como pressuposto, a outra, parte do “motor imóvel”, do Deus criador e redentor, eterno pressuposto. A possibilidade de diálogo reside na capacidade de ambos os saberes reconhecerem seus limites: de um lado, um saber que se aplica adequadamente às relações sociais, ao trabalho, à propriedade, à técnica; de outro, um saber que se aplica adequadamente ao homem ético, na medida em que lhe dá um sentido, um princípio e uma finalidade. Ambos, porém, buscam uma sociedade justa e fraterna.

A encíclica Caritas in veritate é basilar nessa compreensão, e ainda aborda um problema comum enfrentado por teologia e marxismo: o relativismo pós-moderno. É preciso dizer que ambas as abordagens buscam vigorosamente a verdade, cada uma a seu modo. Na revolução epistemológica do século XIX, com o surgimento das modernas ciências humanas e das grandes teorias da história, precisaram se afirmar e se excluíram mutuamente, mas o momento atual reforça as semelhanças entre as duas, especialmente a possibilidade de se conhecer a verdade, ainda que limitada à atual condição humana, possibilidade essa frontalmente combatida pela época em que “cada um tem sua verdade”.

A referida encíclica, já em seus primeiros parágrafos, enfatiza vigorosamente que a caridade (“graça”, “dom”, e portanto “amor gratuito”, “doação de si”) não pode ser separada da verdade, sem a qual se converte em sentimentalismo – “na verdade, a caridade reflete a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente ‘Agápe’ e ‘Lógos’: Caridade e Verdade, Amor e Palavra.” (n.º 3) Depois diz: “a fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8,32) e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral.” (n.º 9) A teologia e o materialismo histórico, portanto, como ciência, estão a serviço da mesma verdade, ainda que por vias diversas. É por isso que a encíclica Caritas in veritate assim conclui sua parte introdutória:

Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente se encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos. [n.º 9]

Isso vai plenamente ao encontro de toda a doutrina social da Igreja, cujo compêndio assim expressa:

76. A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos, qualquer que seja o saber de onde provenham, e tem uma importante dimensão interdisciplinar: “Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, econômicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas provêm” [João Paulo II, Centesimus annus, 59] A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas.

77. Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se evocar a natureza humana como fonte, e a razão como via cognoscitiva da própria fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria lógica interna, ou seja, no argumentar que lhe é próprio.

[…]

78. Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências humanas e sociais: em vista da parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A igreja reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do fato de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia faz referência.

A abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja adquira competência, concretude e atualidade. Graças a elas, a Igreja pode compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, falar aos homens do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social “parte”.

Este diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e “a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude de sua vocação” [idem, 54].

É claro que o chamamento ao diálogo não será ouvido de igual maneira por todos os cristãos e em todas as sociedades – afinal, a Igreja Católica tem mais de 1,3 bilhão de membros em todos os cantos do mundo -, mas está posto. É a hora de os marxistas fazerem valer o que disse Lênin em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo: “o marxismo nada tem que se assemelhe a ‘sectarismo’ no sentido de uma doutrina fechada sobre si, surgida à margem da grande estrada do desenvolvimento da civilização universal”. É hora de responder o chamamento ao diálogo.

Imitando Cristo (3)

Livro I – Avisos úteis para a vida espiritual

Capítulo 3 – Dos ensinamentos da verdade

1. Bem-aventurado aquele a quem a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco alcançam. De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras, de cuja ignorância não seremos julgados? Grande loucura é descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às curiosas e nocivas. Temos olhos para não ver (Sl 113,13).

2. Que se nos dá dos gêneros e das espécies dos filósofos? Aquele a quem fala o Verbo eterno se desembaraça de muitas questões. Desse Verbo único procedem todas as coisas e todas o proclamam e esse é o princípio que também nos fala (Jo 8,25). Sem ele não há entendimento nem reto juízo. Quem acha tudo neste Único, e tudo a ele refere e nele tudo vê, poderá ter o coração firme e permanecer em paz com Deus. Ó Deus de verdade, fazei-me um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só.

3. Quanto mais recolhido for cada um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe a luz da inteligência. O espírito puro, singelo e constante não se distrai no meio de múltiplas ocupações porque faz tudo para honra de Deus, sem buscar em coisa alguma o seu próprio interesse. Que mais te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? O homem bom e piedoso ordena primeiro no seu interior as obras exteriores; nem estas o arrasam aos impulsos de alguma inclinação viciosa, senão que as submete ao arbítrio da reta razão. Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo? E este deveria ser nosso empenho: vencermo-nos a nós mesmos, tornarmo-nos cada dia mais fortes e progredirmos no bem.

4. Toda a perfeição, nesta vida, é mesclada de alguma imperfeição, e todas as nossas luzes são misturadas de sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho mais certo para Deus que as profundas pesquisas da ciência. Não é reprovável a ciência ou qualquer outro conhecimento das coisas, pois é boa em si e ordenada por Deus; sempre, porém, devemos preferir-lhe a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem.

5. Ah! Se se empregasse tanta diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões, não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos claustros. De certo, no dia do juízo não se nos perguntará o que lemos, mas o que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão honestamente temos vivido. Dize-me: onde estão agora todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam nas escolas? Já outros possuem suas prebendas, e nem sei se porventura deles se lembram. Em vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala.

6. Oh! Como passa depressa a glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque, destarte, terão lido e estudado com fruto. Quantos, neste mundo, descuidados do serviço de Deus, se perdem por uma ciência vã! E porque antes querem ser grandes que humildes, se esvaecem em seus pensamentos (Rm 1,21). Verdadeiramente grande é aquele que a seus olhos é pequeno e avalia em nada as maiores honras. Verdadeiramente prudente é quem considera como lodo tudo o que é terreno, para ganhar a Cristo (Fl 3,8). E verdadeiramente sábio aquele que faz a vontade de Deus e renuncia a própria vontade.

“Só Deus basta!” Estas palavras de Santa Teresa d’Ávila bem poderiam resumir esse capítulo da Imitação de Cristo. Que é a nossa ciência diante de Deus? Muitas coisas podemos apreender pela nossa razão apenas, e até reconhecer a existência de Deus (Catecismo da Igreja Católica, 31-36). Porém, tudo sempre nos faltará se nos fiarmos em nós mesmos. É insanidade!

Poderia perguntar: que é maior, o universo ou o cérebro humano? Se nossa consciência não pode conter o que é criado, quanto mais conter o Criador! Temos limites. Reconheçamos nossos limites, e deles seremos livres. Livres, porque em Deus está toda a sabedoria, e n’Ele tudo existe. Fiarmo-nos n’Aquele que tudo criou e em quem tudo existe. Virarmo-nos para longe d’Ele é o inferno desde a terra. Não encontraremos paz enquanto estivermos limitados à nossa fragilidade, mas quando estivermos abertos à Verdade que nos ensina.

Todo ensinamento humano passa, pois somos seres submetidos ao tempo. Todo o ensinamento divino, porém, não passará (Mt 24,35), pois Ele mesmo criou o tempo e acima dele está (Gn 1-2,4). Deus é nossa única fortaleza, e só n’Ele podemos depositar nossa confiança (Sl 45[46]). Quem n’Ele crê está no Amor que é Deus (I Jo 4,16), e no amor tudo espera e tudo suporta (I Cor 13,7). “A caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará. A nossa ciência é parcial, a nossa profecia é imperfeita. Quando chegar o que é perfeito, o imperfeito desaparecerá.” (I Cor 13,8-10)

Imitando Cristo (2)

Livro I – Avisos úteis para a vida espiritual

Capítulo 2 – Do humilde pensar de si mesmo

1. Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros, mas se descuida de si mesmo. Aquele que se conhece bem se despreza e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?

2. Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos por sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E mui insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.

3. Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste. Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. Não te presumas de alta sabedoria (Rm 11,20); antes, confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém te preferir, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.

4. Não há melhor e mais útil estudo que se conhecer perfeitamente e desprezar-se a si mesmo. Ter-se por nada e pensar sempre bem e favoravelmente dos outros, prova é de grande sabedoria e perfeição. Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem. Nós todos somos fracos, mas a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.

Como escrever sobre o que está transcrito acima? Nada tenho a dizer que já não tenha sido dito. A vaidade continua sendo tema do livro de Tomás de Kempis, como no capítulo anterior. Agora, trata da vaidade do saber. Não há dúvida de que a luz da razão seja importante para o homem, e até mesmo meio de se abrir à outra luz (Catecismo da Igreja Católica, 31-36). Mas esta, a luz da fé, ofusca os olhos da mente e a deixa na escuridão – é assim que diz São João da Cruz, na segunda estrofe da Subida do Monte Carmelo. E concordo com ele.

Desde que voltei à Igreja Católica, subi muitos degraus no conhecimento de Deus. Alguns pela razão, mas impulsionado sempre pela fé. Só pude dar esses passos por ter sido aniquilado e por ter encontrado em Cristo – em sua Paixão e sua Vida – o alimento para a alma. Foi a alma, fortificada pelo alimento espiritual, pelo Pão que dá a vida eterna (Jo 6,48-51), que colocou meu corpo sobre os pés e me fez caminhar. Os remédios para o corpo não surtiam efeito, mas Deus me deu o remédio da graça e hoje estou curado.

Por isso digo, com a alegre companhia dos santos: Deus é meu amparo e minha fortaleza, e ainda que toda minha certeza seja abalada, não temerei mal algum (Sl 45[46]; 22[23]). Eu não tenho nada, pois tudo me vem de Deus e a Ele pertence. Que assim seja também com essas palavras. Amém.

Imitando Cristo

Livro I – Avisos úteis para a vida espiritual

Capítulo 1 – Da imitação de Cristo e desprezo de todas as vaidades do mundo

1. Quem me segue não anda nas trevas, diz o Senhor (Jo 8,12). São estas as palavras de Cristo, pelas quais somos advertidos que imitemos sua vida e seus costumes, se verdadeiramente queremos ser iluminados e livres de toda cegueira de coração. Seja, pois, o nosso principal empenho meditar sobre a vida de Jesus Cristo.

2. A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos, e quem tiver seu espírito encontrará nela um maná escondido. Sucede, porém, que muitos, embora ouçam frequentemente o Evangelho, sentem nele pouco enlevo: é que não possuem o espírito de Cristo. Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.

3. Que te aproveita discutires sabiamente sobre a SS. Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição dentro de minha alma, a saber defini-la. Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus? Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Ecl 1,2), senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.

4. Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.

5. Lembra-te a miúdo do provérbio: Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir (Ecl 1,8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.

Assim começa a Imitação de Cristo, famoso livro de Tomás de Kempis, monge agostiniano do século XV. Parece-me um livro sapiencial, destinado a aconselhar seus leitores – não diferente, nesse único aspecto, de O Príncipe, de seu quase contemporâneo Nicolau Maquiavel. Um estilo que não se encontra muito hoje em dia.

Começa com um chamado à humildade, pois grande característica de Cristo é ter sido humilde, humilde a tal ponto que, sendo Deus, fez-se homem – e, sendo homem, fez-se o menor dentre eles, a ponto de morrer por nós na cruz, no que foi elevado à maior das dignidades e recebeu um nome diante do qual todo joelho se dobra, no céu, na terra e nos infernos (Fl 2,5-11). Se queremos participar da vida de Cristo, percamos então a nossa (Lc 9,23-25) de tal maneira que não sejamos mais nós que agimos, mas Cristo que age em nós (Gl 2,19-20).

Falando de mim mesmo, poderia dizer: de que me serve escrever tais palavras? De nada, se não forem dirigidas a Deus, que pode fazer bom uso delas. É Deus quem pode atrair as pessoas para a Palavra (Jo 6,44-46), não as palavras passageiras de um pecador. Foi bom saber, recentemente, que uma postagem foi recebida assim por uma afilhada minha. Que isso aconteça muitas vezes pela graça de Deus, não por meu esforço! Amém!

Aborto e socialismo

É comum ouvir falar que, dentre os direitos das mulheres, conquistados ou por conquistar, estaria o direito a “decidir sobre o próprio corpo”, eufemismo para o aborto artificial. Não há dúvida de que a mulher tem direito sobre seu corpo, e este deve ser exercido em todos os momentos, mas não de maneira inconseqüente. Esse discurso, do “direito de decidir”, é freqüentemente adotado por grupos socialistas, que, de um lado, buscam uma solução coletiva para os problemas humanos, opondo-se fortemente ao individualismo do mercado. Do outro lado, porém, rendem-se facilmente à mercantilização do próprio ser humano e ao seu aniquilamento na massa mercantil.

É indubitável que cada ser humano, pela sua própria dignidade, tem direito a escolher seu destino. Contudo, essa escolha o vincula a suas conseqüências. Um exemplo comum disso é a liberdade de cada um expressar sua opinião – é um direito inalienável na sociedade atual. Contudo, caso a pessoa, expressando sua opinião, ofenda um terceiro, este terá direito a exigir a responsabilização de quem o ofendeu. O direito à resposta e à indenização não exclui o direito à expressão, e vice-versa.

A mesma comparação podemos fazer a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos. Ninguém pode ser obrigado a manter uma relação sexual. Contudo, a partir do momento em que escolheu relacionar-se sexualmente, está vinculado a suas conseqüências. Nesse caso, só quem não tem obrigação alguma é o terceiro que eventualmente surgir dessa relação, o nascituro. Este é um ser humano pleno, tanto quanto uma criança nascida, rumo à maturidade corporal e intelectual, ou quanto um idoso, que já passou do auge físico, mas preserva integralmente seus direitos. O nascituro é um ser humano vivo e integral, nos estágios iniciais do constante desenvolvimento do indivíduo.

Nesse momento em que da relação sexual surgiu um terceiro, alguns querem dizer que o terceiro tem menos direitos que os envolvidos no ato que lhe deu origem, menos direitos humanos, menos direitos fundamentais. Admitir que um ser humano tenha menos direitos que outro é abrir largas avenidas em direção à segregação e ao assassinato socialmente consentidos de largas faixas da população, como no nazismo ou no apartheid.

Outro aspecto da questão é o liberalismo sexual, que leva ao já mencionado aniquilamento do ser humano na massa indistinta do mercado. Se verdadeiramente um socialista deseja uma sociedade de realização do ser humano, deve considerar que cada indivíduo goze de uma dignidade que lhe é própria. Contudo, a satisfação hedonista do desejo sexual leva ao oposto, à genitália humana na prateleira do mercado. Tudo se transforma em mero valor de troca, inclusive o ser humano. Uma verdadeira emancipação do indivíduo em relação à massificação mercantil deve necessariamente passar pela valorização do ser humano enquanto tal, que não pode vir a ser submetido a uma troca mercadológica.

Ocorre que é justamente o pensamento do indivíduo sexualmente aniquilado que perpassa a defesa do aborto artificial. Se o ser humano for retirado da prateleira, terá efetivamente um vínculo com sua ação. Se, ao contrário, for cada vez mais submetido às relações de troca mercantil, some esse vínculo pelo simples fato de que o ato, no caso o ato sexual, deixa de ter um significado próprio, e passa a ser uma mera relação entre dois objetos trocados, e trocados necessariamente, pois o valor de troca (monetário) de um é suficiente para pagar pelo outro. O ser humano some, e somente assim pode sumir o seu vínculo com a própria ação.

Citações de S. Pio de Pietrelcina

“A religião é a única tábua de salvação para o náufrago no mar proceloso da vida”

“A razão suporta as desgraças, a coragem combate-as, a paciência e a religião superam-nas”

(S. Pio de Pietrelcina, apud CASTELLI, Francesco. Padre Pio sob investigação: a “autobiografia” secreta. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 343.)