Advento

Já chegamos à metade da primeira semana do advento. Novo tempo para a Igreja, que inicia mais um ano litúrgico, e que deve ser novo tempo para cada um de seus membros. Preparamo-nos agora para celebrar a primeira vinda de Jesus Cristo, o Filho de Deus, enquanto aguardamos que retorne em sua glória (Prefácio Eucarístico do Advento I). Espero que tenha ido à missa do domingo passado, primeiro desse novo tempo, e, se você não pôde ir, não tarde em procurar e beber da fonte da vida cristã, a liturgia, o serviço de Deus e dos homens, em especial a Sagrada Eucaristia (CEC, 1069-1070; SC, 7-10).

Se você foi à missa, ouviu a leitura do Evangelho, que diz: “Então, verão o Filho do Homem vir sobre uma nuvem com grande glória e majestade. […] Velai sobre vós mesmos, para que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso do comer, com a embriaguez e com as preocupações da vida; para que aquele dia não vos pegue de improviso. Como um laço cairá sobre aqueles que habitam a face de toda a terra. Vigiai, pois, em todo o tempo e orai, a fim de que vos torneis dignos de escapar a todos esses males que hão de acontecer, e de vos apresentar de pé diante do Filho do Homem.” (Lc 21,27.34-36)

E como poderemos nos apresentar de pé diante de Cristo, quando retornar em sua glória? Sendo “imitadores de Deus, como filhos muito amados” (Ef 5,1) e membros de seu corpo, que é a Igreja. “Certamente, ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e a trata, como Cristo faz à sua Igreja – porque somos membros de seu corpo.” (Ef 5,29s). São Cirilo de Jerusalém, falando sobre recebermos o corpo e o sangue de Cristo na eucaristia, disse que o fiel se torna, “tomando o corpo e o sangue de Cristo, concorpóreo e consangüíneo com Cristo. Assim nos tornamos portadores de Cristo (cristóforos), sendo nossos membros penetrados por seu corpo e sangue. Desse modo, como diz o bem-aventurado Pedro, ‘tornamo-nos partícipes da natureza divina’ [2Pd 1,4].” (S. Cirilo de Jerusalém, quarta catequese mistagógica, 3.)

Dessa maneira, somos conformados à imagem de Cristo, para o que fomos predestinados (Rm 8,29), e ouvimos as palavras do apóstolo:

Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento de vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade. [Ef 4,21-24]

“O Deus da paz vos conceda santidade perfeita. Que todo o vosso ser, espírito, alma e corpo, seja conservado irrepreensível para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo!” (1Ts 5,23)

Entregar-se a Deus

O que Deus quer de nós? Ouso dizer que uma coisa muito simples: nós, todos e completamente. Deus nos fez à sua imagem e semelhança (Gn 1,26s). E quem é Deus, a quem devemos nos assemelhar?

Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Pai, que se conhece no Filho (seu lógos, Palavra Eterna – Jo 1,1s), que é idêntico ao Pai em tudo, por natureza e em relação filial. Pai que ama seu Filho no Espírito Santo de amor, que se entrega e se esvazia, Pai que confia ao Filho todas as coisas e lhe “concede o Espírito sem medidas” (Jo 3,34s). Filho que, em resposta eterna ao Pai, entrega a Este tudo o que recebeu, esvaziando-se completamente. “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, disse Jesus Cristo, ao espirar na Santa Cruz (Lc 23,46). Ao fazer isso, esvaziando-se e aniquilando-se completamente, recebeu o lugar que Lhe é devido desde a eternidade, à direita do Pai, e um nome que é acima de todos os nomes (Fl 2,6-11).

“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos muito amados. Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5,1s)

Imitando Cristo (4)

Livro I – Avisos úteis para a vida espiritual

Capítulo 4 – Da prudência nas ações

1. Não se há de dar crédito a toda palavra nem a qualquer impressão, mas cautelosa e naturalmente se deve, diante de Deus, ponderar as coisas. Mas, ai! Que mais facilmente acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza. As almas perfeitas, porém, não crêem levianamente em qualquer coisa que se lhes conta, pois conhecem a fraqueza humana inclinada ao mal e fácil de pecar por palavras.

2. Grande sabedoria é não ser precipitado nas ações, nem aferrado obstinadamente à sua própria opinião; sabedoria é também não acreditar em tudo que nos dizem, nem comunicar logo a outros o que ouvimos ou suspeitamos. Toma conselho com um varão sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu, que seguir teu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio diante de Deus e entendido em muitas coisas. Quanto mais humilde for cada um em si e mais sujeito a Deus, tanto mais prudente será e calmo em tudo.

“A prudência”, nos ensina a Igreja, “é a virtude que dispõe a razão prática a discernir, em qualquer circunstância, nosso verdadeiro bem e a escolher os meios adequados para realizá-lo” (Catecismo da Igreja Católica, 1806). Jesus Cristo, no Sermão da Montanha, nos ensina a sermos “mansos” para “possuirmos a terra” (Mt 5,5).

O autor da Imitação de Cristo nos coloca claramente diante de uma oposição prudência-precipitação. De maneira semelhante, Tanquerey, em seu Compêndio de teologia ascética e mística (1021-1024), coloca-a primeiramente como uma deliberação madura, após consulta à própria razão e a outras pessoas, um bom julgamento e, finalmente, a realização daquilo que foi deliberado.

Se pensarmos na mansidão de que nos fala Jesus, e se ainda remetermos à palavra hebraica utilizada, veremos que o Sermão da Montanha fala da humildade, da suavidade e da paciência. Trata-se, portanto, da necessidade de agir sem nos apegarmos aos nossos juízos imediatos, nem a nossa volubilidade. Avaliar com desapego as situações que se nos apresentam – desapego das nossas vontades egoístas, de nossos juízos mesquinhos e da satisfação imediata -, para que encontremos então a terra que dá a paz ao povo peregrino, que não encontra lugar neste mundo. É esse repouso que o próprio Cristo promete aos que forem mansos e humildes como ele (Mt 11,29).

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil

O Brasil tem uma excelente padroeira: a Virgem Maria, mãe de Deus e nossa mãe. No momento escolhido por Deus para unir-se à humanidade, preparou para si uma mãe que lhe fosse digna, essa mulher, chamada Maria (como tantas outras já em seu tempo), concebida imaculada, isto é, sem a mancha do pecado original, para que fosse sacrário vivo do Filho do Altíssimo.

Na cruz, Jesus Cristo entregou-a a nós na pessoa de São João para que a venerássemos como digna mãe de Deus e exemplo de santidade, mas também para que cuidasse de nós como de filhos: “Quando Jesus viu a sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe” (Jo 19,26-27a).

Não muito tempo antes da independência do Brasil, quando já a revolta contra a coroa portuguesa aumentava, apareceu em São Paulo uma imagem da Virgem Maria. Essa imagem aos poucos foi se tornando célebre graças aos milagres a seu redor, como sinal de que o Brasil tinha uma poderosa protetora. Eis a história de Nossa Senhora Aparecida, retirada da Liturgia das Horas:

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil

Na segunda quinzena de outubro de 1717, três pescadores, Filipe Pedroso, Domingos Garcia e João Alves, ao lançarem sua rede para pescar nas águas do Rio Paraíba, colheram a Imagem de Nossa Senhora da Conceição, no lugar denominado Porto do Itaguassu. Filipe Pedroso levou-a para sua casa conservando-a consigo até 1732, quando a entregou a seu filho Atanásio Pedroso. Este construiu um pequeno oratório para rezar o terço. Devido à ocorrência de milagres, a devoção a Nossa Senhora começou a se divulgar, com o nome dado pelo povo de Nossa Senhora Aparecida. A 26 de julho de 1745 foi inaugurada a primeira Capela. Como esta, com o passar dos anos, não comportasse mais o número de devotos, iniciou-se em 1842 a construção de um novo templo inaugurado a 8 de dezembro de 1888. Em 1893, o Bispo diocesano de São Paulo, Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, elevou-o à dignidade de “Episcopal Santuário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida”. A 8 de setembro de 1904, por ordem do Papa Pio X, a Imagem milagrosa foi solenemente coroada, e a 29 de abril de 1908 foi concedido ao Santuário o título de Basílica menor. O Papa Pio XI declarou e proclamou Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil a 16 de julho de 1930, “para promover o bem espiritual dos fiéis e aumentar cada vez mais a devoção à Imaculada Mãe de Deus”. A 5 de março de 1967 o Papa Paulo VI ofereceu a “Rosa de Ouro” à Basílica de Aparecida. Em 1952 iniciou-se a construção da nova Basílica Nacional de Nossa Senhora Aparecida, solenemente dedicada pelo Papa João Paulo II a 4 de julho de 1980.

Oração

Ó Deus todo-poderoso, ao rendermos culto à Imaculada Conceição de Maria, Mãe de Deus e Senhora nossa, concedei que o povo brasileiro, fiel à sua vocação e vivendo na paz e na justiça, possa chegar um dia à pátria definitiva. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, rogai por nós!

O sacramento do matrimônio

As leituras do último domingo estão voltadas para o sacramento do matrimônio e para a família. No texto do Evangelho segundo S. Marcos (10,2-16), Jesus Cristo estabelece claramente qual a vontade divina, expressa já na criação do mundo:

Chegaram os fariseus e perguntaram-lhe, para o pôr à prova, se era permitido ao homem repudiar sua mulher. Ele respondeu-lhes: “Que vos ordenou Moisés?”. Eles responderam: “Moisés permitiu escrever carta de divórcio e despedir a mulher”. Continuou Jesus: “Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa Lei; mas, no princípio da Criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; e os dois serão senão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. [cf. Gn 1,27;2,24] Não separe, pois, o homem o que Deus uniu”.

Em casa, os discípulos fizeram-lhe perguntas sobre o mesmo assunto. E ele disse-lhes: “Quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa com outro, comete adultério”.

A mensagem é clara – e prossegue com a benção das crianças, que são elas mesmas a benção do casamento (Gn 1,28; Sl 126).

Mas, a mensagem da Revelação vai além. Primeiramente, como instrumento da graça de Deus: “Porque o marido que não tem a fé é santificado por sua mulher; assim como a mulher que não tem a fé é santificada pelo marido que recebeu a fé” (1Cor 7,14). O matrimônio é, portanto, sacramento, pois sinal vivo e eficaz da graça, instituído pelo Verbo Eterno, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Em segundo lugar, por semelhança e com grande beleza, a Igreja é esposa de Cristo:

Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim os maridos devem amar as suas mulheres, como a seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Certamente, ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e trata, como Cristo faz à sua Igreja, porque somos membros de seu corpo. [Ef 5,25-30]

O matrimônio aparece dessa maneira também no Apocalipse de S. João (19,7-9), quando nos são narradas as núpcias do Cordeiro com a Esposa vestida com o “linho puríssimo e resplandecente” que são as boas obras dos santos. “Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro”, são palavras autênticas de Deus. Alegremo-nos, pois todos nós somos convidados (Mt 22,9) – e o matrimônio é sua antecipação (Catecismo da Igreja Católica, 1642).

“Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo”

No calendário litúrgico, os dias 14, 15 e 16 de setembro são o que poderíamos chamar “tríduo doloroso”. São três dias em que, provavelmente por coincidência, primeiro se exalta a Santa Cruz de Cristo, depois a memória de Nossa Senhora das Dores, e, por fim, São Cornélio, papa, e São Cipriano, bispo, ambos mártires. São Paulo diz aos colossenses: “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo em minha carne, por seu corpo que é a Igreja.” (Cl 1,24)

É claro que não se trata de alargar a salvação. Esta é completa em Cristo. Em Cristo, pela graça santificante do Espírito Santo, chegamos ao Pai e participamos da vida divina (Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1999). Também nossa redenção é completa em Cristo, que, sendo Deus, uniu-se à humanidade nascendo de uma Virgem, morreu em obediência ao Pai e inocente, castigado por nossos crimes, abriu as portas do Céu aos justos que o precederam, ressuscitou e, elevado ao Céu, elevou ao Pai a nossa natureza humana (Is 53; Jo 1,1-14; Rm 5,19; Cl 1,15-23; 2Pd 1,4; símbolos Apostólico e Niceno-Constantinopolitano; CIC 422-667).

O que fala, então, São Paulo a respeito do sofrimento humano? O beato João Paulo II nos explica muito bem, em sua carta apostólica Salvifici Doloris (23):

Aqueles que participam dos sofrimentos de Cristo têm diante dos olhos o mistério pascal da Cruz e da Ressurreição, no qual Cristo, numa primeira fase, desce até às últimas conseqüências da debilidade e da impotência humana: efetivamente, morre pregado na Cruz. Mas dado que nesta fraqueza se realiza ao mesmo tempo a sua elevação, confirmada pela força da Ressurreição, isso significa que as fraquezas de todos os sofrimentos humanos podem ser penetradas pela mesma potência de Deus, manifestada pela Cruz de Cristo. Nesta concepção, sofrer significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade. Nele, Deus confirmou que quer operar de um modo especial por meio do sofrimento, que é a fraqueza e o despojamento do homem e ainda, que é precisamente nesta fraqueza e neste despojamento que ele quer manifestar o seu poder. Compreende-se, deste modo, a recomendação da primeira Carta de São Pedro: Se alguém “sofre por ser cristão, não se envergonhe, mas dê glória a Deus por este título” [1Pd 4,16].

Ademais, se há “um só corpo e um só espírito” (Ef 4,4), se somos todos membros do Corpo de Cristo (Rm 12,4s; 1Cor 10,17) toda vez que alguém deposita em Deus sua esperança, é todo o Corpo de Cristo que se beneficia. Toda vez que alguém perdura na fé mesmo quando os sofrimentos o põem à prova, é todo o Corpo de Cristo que cresce. “O sangue dos mártires é a semente de novos cristãos”, disse Tertuliano. Essa é a comunhão dos santos.

É dessa solidariedade na Cruz que já o justo Simeão falava quando disse para Maria: “uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2,35). Assim podemos pedir a Deus: “Elevai-nos pela cruz até o vosso Reino!” (Liturgia das horas [LH], próprio da Exaltação da Santa Cruz, II Vésperas). Por isso pedimos a Deus que dê a sua Igreja, “unida a Maria na paixão de Cristo, participar da ressurreição do Senhor” (LH, próprio de Nossa Senhora das Dores, Laudes). Como diz São Paulo aos Coríntios: “Com efeito, à medida que em nós crescem os sofrimentos de Cristo, crescem também por Cristo as nossas consolações” (2Cor 1,5).

Pelo que tudo suporto por amor dos escolhidos, para que também eles consigam a salvação em Jesus Cristo, com a glória eterna. Eis uma verdade absolutamente certa:

Se morrermos com ele,
com ele viveremos.
Se soubermos perseverar,
com ele reinaremos.
Se, porém, o renegarmos,
ele nos renegará.
Se formos infiéis…
ele continua fiel,
e não pode desdizer-se.

(2Tm 2,10-13)

Repartir a sabedoria

Hoje é dia de comemorar São João Crisóstomo (c. 349-407), bispo e doutor da Igreja. Não teve medo de promover a reforma dos costumes, tanto do clero quanto dos fiéis. Recebeu a oposição da corte imperial e de inimigos pessoais, o que lhe rendeu duas vezes o exílio. Segundo a liturgia das horas, “a sua notável diligência e competência na arte de falar e escrever, para expor a doutrina católica e formar os fiéis na vida cristã, mereceu-lhe o apelativo de Crisóstomo, ‘boca de ouro’.”

No comum dos doutores da Igreja para o ofício das laudes (oração do início do dia, na liturgia das horas), lemos do livro da Sabedoria (Sb 7,13-14)

Aprendi a Sabedoria sem maldade e reparto-a sem inveja; não escondo a sua riqueza. É um tesouro inesgotável para os homens; os que a adquirem atraem a amizade de Deus, porque recomendados pelos dons da instrução.

Ao rezar o ofício, não pude deixar de lembrar de imediato as palavras de Cristo (Mt 5,14-16):

Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.

A sabedoria que Deus nos dá e que devemos repartir nos foi dada toda e diretamente por Ele (Jo 15,15):

Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai.

Que nossas obras e nossas ações sejam um compartilhar a sabedoria que Deus nos dá em sua Igreja, na vida dos santos e nos dons do Espírito. Que, nesse mundo que reduziu o homem à mera racionalidade, mas que não houve nem sequer o que a razão diz (Rm 1,18ss), possamos espalhar a sabedoria da fé!

Pelos políticos – intenções do papa para setembro

É com um pouco de atraso, mas, no fim das contas, em uma data muito propícia, que falo das intenções gerais do papa para este mês: pelos políticos. Hoje é dia de comemorar a formação política do Brasil, com seus percalços e suas conquistas, e é também mês de campanha eleitoral nos municípios. Tempo adequado para rezarmos pelos nossos representantes nos governos e casas legislativas.

“O que se exige dos administradores é que sejam fiéis”, diz São Paulo na leitura da missa de hoje (I Cor 4,2). Fiéis, é claro, àqueles que lhes conferem o poder da administração. Como na parábola do dinheiro emprestado (Lc 19,11ss), em que Jesus Cristo nos ensina que devemos trabalhar, administrando os dons que nos deu, para que venha o seu Reino a muitos, também os governantes, a quem confiamos a administração das coisas públicas, devem agir para a expansão do bem comum.

Mais especificamente, o papa ora este mês para que os políticos hajam com honestidade, integridade e amor à verdade. Deus é a verdade (Jo 14,6) e nos ama integralmente, a ponto de oferecer-se, na pessoa do Filho, pelo nosso bem (Jo 3,16). A verdade liberta o homem (Jo 8,32), e o serviço à verdade é o serviço ao desenvolvimento humano integral (Caritas in veritate, 9).

Rezemos, então, para que, no amor e na verdade, os políticos busquem o desenvolvimento de cada homem e de cada mulher, bem como da humanidade inteira. Que os eleitores, em especial nos municípios brasileiros, saibam escolher bem seus representantes, e que estes sejam bons administradores do bem comum. Que os governantes nos estados, no Distrito Federal e na República promovam a verdadeira realização humana. E que, especialmente no plano internacional, as “estéreis oposições de forças dêem lugar à colaboração amiga, pacífica e desinteressada, a favor de um desenvolvimento solidário da humanidade, onde todos os homens possam realizar-se” (Populorum progressio, 84). Amém.

Cristianismo, sempre perseguido

Acostumamo-nos a crer que é possível ser um cristão acomodado. (A princípio) não andamos pela rua com medo de sermos reconhecidos como cristãos. Quando alguém pergunta, até dizemos, um tanto embaraçados, qual a nossa religião. Justamente aí deveríamos ver que, mesmo hoje em dia, não é fácil ser cristão.

Em muitos países, a violência atinge graus extremos. Na Síria, entre as minorias que os rebeldes fizeram vítimas dos conflitos (forçando assim, senão uma aliança direta com o governo de Bashar al Assad, ao menos uma solidariedade, visto que também o presidente daquele país é membro de uma minoria, a dos islâmicos alawitas), entre essas minorias estão os cristãos, constantemente acossados. Em Israel, a violência também aumenta. No Paquistão, há uma “lei da blasfêmia“, propícia a todo tipo de abusos. Na Índia, pais maltratam e expulsam filha que se converteu ao cristianismo. No Laos, onde a constituição assegura a liberdade de religião, um homem foi preso por converter 300 pessoas à fé cristã. Mas, esses casos, por brutais que sejam, parecem distantes. Aqui no “ocidente”, com sua cultura de tolerância e liberdade, as coisas são diferentes. Na Inglaterra, por exemplo, pessoas são proibidas de usar crucifixos no trabalho.

Como disse acima, muitas vezes ficamos perturbados se nos perguntam qual a nossa religião. Isso acontece porque hoje existe uma cultura avessa a qualquer religiosidade externa – a religião é assunto privado, dizem. Assim, participar da Igreja seria um atentado contra a modernidade. E dessa modernidade somos vítimas, muitas vezes passivas. O primeiro passo que devemos dar é dizer sem constrangimentos: somos cristãos. Ao mesmo tempo, ajamos no amor e na verdade. A cada pequeno ato de caridade na verdade, estaremos agindo contra essa perversa ordem que tenta nos manter isolados, com uma fé confinada no indivíduo. Para sermos luz do mundo (Mt 5,14-16), não podemos nos confundir com as trevas.

A doutrina social da Igreja e as ciências

Quem se desse ao trabalho de ouvir atentamente a exortação do papa Bento XVI ao diálogo entre marxismo e cristianismo talvez se perguntasse: “isso é possível, a Igreja tem abertura ao conhecimento científico da sociedade?” A pergunta faria sentido, porque o marxismo pretende ser um conhecimento científico das relações sociais a partir de suas bases materiais. Por outro lado, a Igreja e os marxistas por mais de um século se estranharam, excluindo-se mutuamente, em razão de suas escolhas epistemológicas.

É preciso que se diga: marxismo e teologia são abordagens muito diversas da realidade. Uma parte do material, tomando-o como pressuposto, a outra, parte do “motor imóvel”, do Deus criador e redentor, eterno pressuposto. A possibilidade de diálogo reside na capacidade de ambos os saberes reconhecerem seus limites: de um lado, um saber que se aplica adequadamente às relações sociais, ao trabalho, à propriedade, à técnica; de outro, um saber que se aplica adequadamente ao homem ético, na medida em que lhe dá um sentido, um princípio e uma finalidade. Ambos, porém, buscam uma sociedade justa e fraterna.

A encíclica Caritas in veritate é basilar nessa compreensão, e ainda aborda um problema comum enfrentado por teologia e marxismo: o relativismo pós-moderno. É preciso dizer que ambas as abordagens buscam vigorosamente a verdade, cada uma a seu modo. Na revolução epistemológica do século XIX, com o surgimento das modernas ciências humanas e das grandes teorias da história, precisaram se afirmar e se excluíram mutuamente, mas o momento atual reforça as semelhanças entre as duas, especialmente a possibilidade de se conhecer a verdade, ainda que limitada à atual condição humana, possibilidade essa frontalmente combatida pela época em que “cada um tem sua verdade”.

A referida encíclica, já em seus primeiros parágrafos, enfatiza vigorosamente que a caridade (“graça”, “dom”, e portanto “amor gratuito”, “doação de si”) não pode ser separada da verdade, sem a qual se converte em sentimentalismo – “na verdade, a caridade reflete a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente ‘Agápe’ e ‘Lógos’: Caridade e Verdade, Amor e Palavra.” (n.º 3) Depois diz: “a fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8,32) e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral.” (n.º 9) A teologia e o materialismo histórico, portanto, como ciência, estão a serviço da mesma verdade, ainda que por vias diversas. É por isso que a encíclica Caritas in veritate assim conclui sua parte introdutória:

Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente se encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos. [n.º 9]

Isso vai plenamente ao encontro de toda a doutrina social da Igreja, cujo compêndio assim expressa:

76. A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos, qualquer que seja o saber de onde provenham, e tem uma importante dimensão interdisciplinar: “Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, econômicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas provêm” [João Paulo II, Centesimus annus, 59] A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas.

77. Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se evocar a natureza humana como fonte, e a razão como via cognoscitiva da própria fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria lógica interna, ou seja, no argumentar que lhe é próprio.

[…]

78. Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências humanas e sociais: em vista da parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A igreja reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do fato de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia faz referência.

A abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja adquira competência, concretude e atualidade. Graças a elas, a Igreja pode compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, falar aos homens do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social “parte”.

Este diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e “a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude de sua vocação” [idem, 54].

É claro que o chamamento ao diálogo não será ouvido de igual maneira por todos os cristãos e em todas as sociedades – afinal, a Igreja Católica tem mais de 1,3 bilhão de membros em todos os cantos do mundo -, mas está posto. É a hora de os marxistas fazerem valer o que disse Lênin em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo: “o marxismo nada tem que se assemelhe a ‘sectarismo’ no sentido de uma doutrina fechada sobre si, surgida à margem da grande estrada do desenvolvimento da civilização universal”. É hora de responder o chamamento ao diálogo.