Estados Unidos, Cuba e a verdadeira religião

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Ontem vimos a história acontecer diante de nossos olhos. Estados Unidos da América e Cuba, unidos pelos laços da diplomacia, com a mediação do papa Francisco.

Eis meu Servo que eu amparo, meu eleito ao qual dou toda a minha afeição, faço repousar sobre ele meu espírito, para que leve às nações a verdadeira religião.
Ele não grita, nunca eleva a voz, não clama nas ruas.
Não quebrará o caniço rachado, não extinguirá a mecha que ainda fumega. Anunciará com toda a franqueza a verdadeira religião; não desanimará, nem desfalecerá,
até que tenha estabelecido a verdadeira religião sobre a terra, e até que as ilhas desejem seus ensinamentos.
Eis o que diz o Senhor Deus que criou os céus e os desdobrou, que firmou a terra e toda a sua vegetação, que dá respiração a seus habitantes, e o sopro vital àqueles que pisam o solo:
Eu, o Senhor, chamei-te realmente, eu te segurei pela mão, eu te formei e designei para ser a aliança com os povos, a luz das nações;
para abrir os olhos aos cegos, para tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão aqueles que vivem nas trevas. (Is 42,1-7)

Esses são versos do profeta Isaías, aplicados ao Cristo de Deus. Ontem, o papa, vigário de Cristo, os cumpriu.

E o que relações diplomáticas têm a ver com religião? Tudo. “Religião” é palavra de origem latina e tem dois significados. O mais conhecido vem de religare, isto é, religar. A princípio, religar o homem e Deus. Ontem, o que aconteceu foi religar o homem com o homem. Mas, isso não teria sido possível sem o outro significado, que vem de relegere: reler. Esse grande acontecimento, que transformou armas em arados (v. Is 2,4), só foi possível graças à releitura das relações EUA-Cuba. Das antigas bases econômico-políticas, que apenas tinha olhos para o planisfério e as antigas propriedades americanas na ilha, passou-se a bases humanitárias, graças à intervenção do papa Francisco. Os olhos dos mandatários passaram a homens e mulheres que sofrem, especialmente quatro prisioneiros agora libertados. Cuba se abriu para o mundo, e o mundo se abriu para Cuba.

Religião e história brasileira

Isso nos deveria levar a reler também a história brasileira, reler acontecimentos da mesma época que a revolução cubana (1959). Isso teria impactos significativos na nossa política atual, e traria a paz política a nosso país. Os EUA optaram por isolar Cuba, mas não deu certo — apenas levou à radicalização da política cubana. Certos grupos econômicos e políticos optaram por isolar o Partido Trabalhista Brasileiro e os presidentes petebistas Getúlio Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964). Alguns cristãos também se envolveram nesse isolamento. O resultado foram 21 anos de ditadura, assassinatos políticos, torturas, exílio, guerra interna. Muitos cristãos foram perseguidos, leigos, religiosos e sacerdotes. Nem mesmo o recém-divulgado relatório da Comissão da Verdade foi capaz de realizar a releitura.

Chegou a hora de abrir os corações, retirar o coração enrijecido pelo ódio e pelo pecado e deixar Deus colocar em nós um coração de carne (Ez 11,19; 36,26), capaz de sentir com o outro, compadecer-se do sofrimento do nosso próximo. Deus veio sentir conosco todo o sofrimento humano e carregá-lo sobre a cruz. Todos sofreram as conseqüências da política de isolamento, e ainda hoje nos isolamos uns dos outros: dividimo-nos entre os que apoiam e os que repudiam a ditadura. Chegou a hora de reconhecermo-nos como irmãos. Chegou a hora de dizermos para o outro: você teve suas razões, você teve seu padecimento. Vamos agora caminhar juntos e realizar a verdadeira religião, pois, “Se alguém pensa ser piedoso, mas não refreia a sua língua e engana o seu coração, então é vã a sua religião. A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e conservar-se puro da corrupção deste mundo.” (Tg 1,26s)

Cuidado com as doutrinas vãs

Hoje rezei o ofício das leituras, e Deus me brindou com textos muito espirituais e muito atuais. Vejam só:

O salmo lido foi o 102, que em seu versículo 6 diz: “O Senhor realiza obras de justiça e garante o direito aos oprimidos”.

A primeira leitura foi do livro do profeta Daniel (5,1-2.5-9.13-17.25-6,1). Trata da profecia contra o rei Baltasar da Babilônia. Este ofereceu um grande banquete aos dignatários de sua corte, com muito vinho. “Já embriagado, Baltasar mandou trazer os vasos [sagrados] de ouro e prata, que seu pai Nabucodonosor tinha tirado do templo de Jerusalém, para beberem deles o rei e os grandes do reino, suas mulheres e concubinas.” Foi então que apareceram dedos que escreveram uma expressão enigmática na parede do palácio. Os sábios da Babilônia não conseguiam compreender. Os magos, caldeus, astrólogos: todos foram chamados, mas não conseguiram decifrar. Então levaram até o rei o profeta Daniel, levado cativo de Judá. Rejeitando os favores do rei, decifrou o enigma: “Deus contou os dias de teu reinado e deu-o por concluído; foste pesado na balança, e achado com menos peso; teu reino foi dividido e entregue aos medos e persas”, que habitavam o planalto do Irã. Nessa mesma noite, Baltasar foi assassinado, e Dario, o medo, assumiu o poder sobre a Babilônia. Assim, Judá ficou livre do cativeiro babilônico por obra de Deus, que se valeu dos poderes mundanos e da embriaguez dos que se entregam ao pecado.

“Em sua mão o Senhor Deus tem uma taça com um vinho de mistura inebriante; todos os ímpios sobre a terra hão de bebê-lo. Quem à besta e sua imagem adorar, beberá o vinho da cólera de Deus” (Sl 74,6.8s; Ap. 14,9s), dizia o responsório à primeira leitura.

A segunda leitura foi extraída de um autor do século II. Dizia que “se nos esforçarmos por viver bem, a paz nos acompanhará. Por essa razão, não podem encontrá-la os homens que, presa de temores humanos, preferem o prazer presente à promessa futura. Ignoram quanto tormento traz consigo a volúpia deste mundo e que delícias encerra a promessa do futuro.” É o que fazem aqueles que abandonam a caridade e a verdade em nome da defesa de uma candidatura derrotada. Fazem para si ídolos chamados propriedade e Estado mínimo. A propriedade, porém, quando mal utilizada (pelo latifúndio, por exemplo) somente aprofunda as contradições sociais e a miséria. “Isto torna-se evidente no persistente fenômeno da apropriação indevida e da concentração da terra […]. Tal estado de coisas é muitas vezes uma das causas mais importantes de situações de fome e miséria e representa uma negação concreta do princípio, derivado da origem comum e fraternidade em Deus (cf. Ef 4,6), que todos os seres humanos nasceram iguais em dignidade e direitos.” (Para uma melhor distribuição da terra: o desafio da reforma agrária, n. 1)

Já o outro ídolo, o Estado mínimo, que não garante nem a justiça, nem o direito dos oprimidos (v. Sl 102,6 acima), tem sua origem no liberalismo, que prega a anomia, isto é, a falta de regras, o que é contrário a toda doutrina da Igreja. O liberalismo vai contra a verdade, o direito e a justiça. O liberalismo vai contra Deus ao atacar o princípio de que o Senhor criou um mundo com ordem e com fartura para todos, mas que o pecado corrompeu. O liberalismo não quer ordem, nem justiça, ao contrário de Deus, que “protege o estrangeiro”, “ampara a viúva e o órfão”, e “confunde o caminho dos maus” (Sl 145,9). Os que hoje pregam o golpe militar chegam a chamar médicos estrangeiros de “submédicos” (como fez um procurador da República em e-mail para mim), e também defendem o fim dos programas de assistência social, inclusive o bolsa-família, que ampara os que não têm amparo. E poderíamos ainda falar de quantas vezes atacam a verdade…

Continuemos, porém, a leitura:

Esperemos, então, a cada momento, na caridade e na justiça, o reino de Deus, apesar de não conhecermos o dia da chegada de Deus.

Vamos, irmãos, façamos penitência, convertamo-nos para o bem; porque estamos cheios de insensatez e de maldade. Lavemo-nos dos pecados passados e mudando profundamente o nosso modo de pensar seremos salvos. Não sejamos aduladores, nem procuremos agradar somente aos irmãos, mas também aos de fora, por amor da justiça, para que o Nome não seja blasfemado por nossa causa (cf. Rm 2,24).

E isso me diz que não podemos ser aduladores dos poderosos deste mundo, especialmente dos que não praticam a caridade e a justiça. Também me diz que não devemos ofender os que pensam diferente de nós, nem os que não crêem no mesmo Deus que nós. A quem poderíamos julgar, sem conhecer profundamente as razões para sua incredulidade? Será que não fomos nós mesmos que a provocamos, ao dizer que essa ou aquela doutrina, mesmo buscando a verdade e a caridade, seria anticristã? Procuremos o diálogo e o encontro, acolhamos a todos para que sejamos também ouvidos. Falo de um exemplo muito concreto: quantos não erigiram outro ídolo, o anticomunismo? Quantos, em nome desse ídolo, não aceitaram ou praticaram todo tipo de barbárie, como a tortura e o assassinato, inclusive de sacerdotes? Lembremo-nos de que temos muito em comum com os comunistas e outros que buscam uma sociedade melhor. Lembremo-nos, especialmente, de que “quem procura a verdade, consciente ou inconscientemente, procura a Deus” (Santa Edith Stein).

Participação social, etc. e tal (ou: o Brasil segue na direção oposta ao comunismo)

Recentemente (logo antes do 1.º turno), tive a oportunidade de participar, como representante do órgão público em que trabalho, de uma reunião no Palácio do Planalto a respeito de participação social no Mercosul e na Unasul. Já escrevi a respeito da política nacional de participação social e do voto anticomunista, o que deveria tornar desnecessário relatar tal reunião por aqui. Mas, como esse assunto sempre vem à tona quando os mais favorecidos entram na disputa política, deixo para você um brevíssimo relato do que vi e ouvi.

Primeiro: segundo a própria Igreja, “toda democracia deve ser participativa” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 190). Isso, ao menos, se o desejado é realmente representar a vontade do povo, que só é conhecida pelo povo coletivamente. Essa participação não se resume ao voto periódico para eleger representantes, mas pode assumir as formas mais diversas, como o plebiscito, o referendo, consultas públicas e conselhos de políticas públicas. Estes, aliás, existem no Brasil já há décadas, tendo sido criados até mesmo durante a ditadura militar, que atuou em nome do anticomunismo.

É moda, porém, em alguns setores, tratar qualquer forma de democracia participativa como “comunismo”. São pessoas que afirmam que o país segue atrás de Venezuela e de Bolívia rumo ao comunismo, quando na verdade segue até mesmo na direção oposta. São pessoas que falam uma coisa aqui, e outra, contrária, ali. Um exemplo de incoerência, o PSDB foi contra o decreto que consolidou a Política Nacional de Participação Social. Sob o disfarce de resguardar a divisão de poderes, quis extirpar da legislação brasileira a garantia de que o povo deve ser ouvido durante a formulação de políticas que estão sob a responsabilidade do poder executivo. O ex-candidato ao governo do Distrito Federal pelo PSDB, Luiz Pitiman, chegou a afirmar que “O PT avança para o comunismo no Brasil”. Por outro lado, o programa de governo registrado por Aécio Neves no Tribunal Superior Eleitoral afirma:

O Governo Federal deve estimular o debate e a busca de consensos por meio da participação social de grupos, coletivos, organizações não-governamentais, movimentos sociais e populares. Não se pode buscar as soluções para os graves problemas nacionais sem escutar aqueles que tem a efetiva vivência destes em seu dia-a-dia e quem trabalha para resolvê-los. A participação do cidadão também se manifesta por meio dos Conselhos Nacionais de políticas públicas, que devem ser prestigiados e fortalecidos. (p. 24-25)

O PSDB deveria decidir se é a favor ou contra a participação social…

Vamos, porém, ao que interessa. Fui, na citada reunião, um dos representantes do órgão público em que trabalho, o qual compõe a Presidência da República. Havia ali, na sala de reuniões leste do Palácio, um grande número de cadeiras, a maioria destinada aos representantes da sociedade civil. Havia também um número menor, mas significativo, de cadeiras destinadas aos representantes dos órgãos públicos.

A diversidade de representantes da sociedade civil organizada impressionava. Ao lado do MST ou da UBM, uma organização internacional de jovens evangélicos e outra, latino-americana, de micro, pequenos e médios empresários. Grande diversidade social e de opiniões políticas. Na própria organização da reunião, o cuidado para não manipular, nem parecer que se manipulasse a opinião social, foi a grande regra. Nos dois dias, muito tempo foi destinado a que os representantes da sociedade civil discutissem entre si as questões relativas à participação social no Mercosul e na Unasul. Algumas opiniões resultantes dessas discussões inclusive divergiram do entendimento do governo federal. Um exemplo: o governo não admite que haja um representante da sociedade civil em cada conselho da Unasul (especialmente o de defesa), enquanto a sociedade civil o queria. Esta é apenas uma das divergências que o atual governo está disposto a ouvir, enquanto a prática tucana quer desprezá-la.

Apenas mais um aspecto importante, pois PSDB, DEM e seus simpatizantes costumam pintar o governo de “vermelho” e “bolivariano”, como se fosse um governo socialista e guiado pela Venezuela e pela Bolívia. Especificamente em relação à participação social na Unasul, o Brasil (governo e representantes da sociedade) é contra a forma de participação proposta por aqueles países, que pode colocar em risco o próprio espírito da Unasul, que é de estabilização regional, procurando dirimir conflitos e confrontos, numa área do globo com visões político-econômicas tão diversas como as da Colômbia, da Venezuela, do Chile, do Paraguai ou da Bolívia. Muitos militantes da campanha tucana igualam a Unasul à União Soviética, mas, os países com governos de orientação socialista (Bolívia e Venezuela) vão em uma direção, e o governo brasileiro vai na direção contrária.

Enfim, é o que posso dizer no momento sobre esse importante tema. Que o Senhor Deus nos ilumine e nos guie para um bom voto, com uma consciência bem formada, sem medos preconcebidos, procurando compreender a realidade atual e rezando sempre por nossos governantes. Que Deus abençoe e proteja o Brasil, pela intercessão da Santíssima Virgem, nossa mãe, a quem recorremos sob o título de Nossa Senhora da Imaculada Conceição Aparecida. Amém.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 23-25

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO I: O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS A TODA A HUMANIDADE

I. O AGIR LIBERTADOR DE DEUS NA HISTÓRIA DE ISRAEL
a) A proximidade gratuita de Deus

Do Decálogo deriva um compromisso que diz respeito não só ao que concerne à fidelidade ao Deus único e verdadeiro, como também às relações sociais no seio do povo da Aliança. Estas últimas são reguladas, em particular, pelo que se tem definido como o direito do pobre: « Se houver no meio de ti um pobre entre os teus irmãos… não endurecerás o teu coração e não fecharás a mão diante do teu irmão pobre; mas abrir-lhe-ás a mão e emprestar-lhe-ás segundo as necessidades da sua indigência» (Dt 15, 7-8). Tudo isto vale também em relação ao forasteiro: «Se um estrangeiro vier habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas esteja ele entre vós como um compatriota e tu amá-lo-ás como a ti mesmo, por que vós fostes já estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus» (Lv 19, 33-34). O dom da libertação e da terra prometida, a Aliança do Sinai e o Decálogo estão, portanto, intimamente ligados a uma praxe que deve regular, na justiça e na solidariedade, o desenvolvimento da sociedade israelita.

24Entre as multíplices disposições inspiradas por Deus, que tendem a concretizar o estilo de gratuidade e de dom, a lei do ano sabático (celebrado a cada sete anos) e do ano jubilar (cada cinqüenta anos)[A lei é enunciada em Ex 23, Dt 15, Lv 25.] se distingue como uma importante orientação — ainda que nunca plenamente realizada — para a vida social e econômica do povo de Israel. É uma lei que prescreve, além do repouso dos campos, a remissão das dívidas e uma libertação geral das pessoas e dos bens: cada um pode retornar à sua família e retomar posse do seu patrimônio.

Esta legislação entende deixar assente que o evento salvífico do êxodo e a fidelidade à Aliança representam não somente o princípio fundante da vida social, política e econômica de Israel, mas também o princípio regulador das questões atinentes à pobreza econômica e às injustiças sociais. Trata-se de um princípio invocado para transformar continuamente e a partir de dentro a vida do povo da Aliança, de maneira a torná-la conforme ao desígnio de Deus. Para eliminar as discriminações e desigualdades provocadas pela evolução sócio-econômica, a cada sete anos a memória do êxodo e da Aliança é traduzida em termos sociais e jurídicos, de sorte que a questão da propriedade, das dívidas, das prestações de serviço e dos bens seja reconduzida ao seu significado mais profundo.

25Os preceitos do ano sabático e do ano jubilar constituem uma doutrina social «in nuce»[Cf. João Paulo II, Carta apost. Tertio Millennio adveniente, 13]. Eles mostram como os princípios da justiça e da solidariedade social são inspirados pela gratuidade do evento de salvação realizado por Deus e não têm somente o valor de corretivo de uma praxe dominada por interesses e objetivos egoístas, mas, pelo contrário, devem tornar-se, enquanto «prophetia futuri», a referência normativa à qual cada geração em Israel se deve conformar se quiser ser fiel ao seu Deus.

Tais princípios tornam-se o fulcro da pregação profética, que visa a proporcionar a sua interiorização. O Espírito de Deus, derramado no coração do homem ― anunciam-no os Profetas ― fará aí medrar aqueles mesmos sentimentos de justiça e solidariedade que moram no coração do Senhor (cf. Jr 31, 33 e Ez 36, 26-27). Então a vontade de Deus, expressa na Decálogo doado no Sinai, poderá enraizar-se criativamente no próprio íntimo do homem. Desse processo de interiorização derivam maior profundidade e realismo para o agir social, tornando possível a progressiva universalização da atitude de justiça e solidariedade, que o povo da Aliança é chamado a assumir diante de todos os homens, de todo o povo e nação.

A Lei dada por Deus ao povo de Israel é, portanto, a expressão não apenas cultual, mas também social da Salvação. Cristo veio nos trazer a plenitude dela e, para tanto, não suprimiu a Lei, nem os profetas, mas os realizou ao extremo (Mt 5,17). É em Cristo crucificado que ambos se realizam, e, para sermos imitadores dele, devemos também nós realizar verdadeiramente essa Salvação, pelo cuidado com os pobres e pelo culto devido a Deus, pois um não é possível plenamente sem o outro (v. Ef 5,1s; Tg 1,27; I Jo 4,16ss). Nas eleições que se aproximam, reflitamos primeiro e decidamos pelo caminho da Salvação, pois ele também se expressa na política.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 20-22

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO I: O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS A TODA A HUMANIDADE

I. O AGIR LIBERTADOR DE DEUS NA HISTÓRIA DE ISRAEL
a) A proximidade gratuita de Deus

20 Toda autêntica experiência religiosa, em todas as tradições culturais, conduz a uma intuição do Mistério que, não raro, chega a divisar alguns traços do rosto de Deus. Ele aparece, por um lado, como origem daquilo que é, como presença que garante aos homens, socialmente organizados, as condições básicas de vida, pondo à disposição os bens necessários; por outro lado, como medida do que deve ser, como presença que interpela o agir humano ― tanto no plano pessoal como no social ― sobre o uso dos mesmos bens nas relações com os outros homens. Em toda experiência religiosa, portanto, se revelam importantes quer a dimensão do dom e da gratuidade, que se percebe como subjacente à experiência que a pessoa humana faz do seu existir junto com os outros no mundo, quer as repercussões desta dimensão sobre a consciência do homem, que adverte ser interpelado a gerir de forma responsável e convival o dom recebido. Prova disso é o reconhecimento universal da regra de ouro, em que se exprime, no plano das relações humanas, a lei que inscrita por Deus no homem: « Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles »[Catecismo da Igreja Católica, 1789; 1970; 2510].

21Sobre o pano de fundo, compartilhado em vária medida, da experiência religiosa universal, emerge a Revelação que Deus faz progressivamente de Si próprio a Israel. Ela responde à busca humana do divino de modo inopinado e surpreendente, graças aos gestos históricos, pontuais e incisivos, nos quais se manifesta o amor de Deus pelo homem. Segundo o livro do Êxodo, o Senhor dirige a Moisés a seguinte palavra: «Eu vi, eu vi a aflição do meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa dos seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos. E desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo sair do Egito para uma terra fértil e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel» (Ex 3, 7-8). A proximidade gratuita de Deus ― à qual alude o Seu próprio Nome, que Ele revela a Moisés, «Eu sou aquele que sou» (cf. Ex 3, 14) ― manifesta-se na libertação da escravidão e na promessa, tornando-se ação histórica, na qual tem origem o processo de identificação coletiva do povo do Senhor, através da aquisição da liberdade e da terra que Deus lhe oferece em dom.

22À gratuidade do agir divino, historicamente eficaz, acompanha constantemente o compromisso da Aliança, proposto por Deus e assumido por Israel. No Monte Sinai a iniciativa de Deus se concretiza na aliança com o Seu povo, ao qual é dado o Decálogo dos mandamentos revelados pelo Senhor (cf. Ex 19-24). As «dez palavras» (Ex 34, 28; cf. Dt 4, 13; 10, 4) «exprimem as implicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança. A existência moral é resposta à iniciativa amorosa do Senhor. É reconhecimento, homenagem a Deus e culto de ação de graças. É cooperação com o plano que Deus executa na história»[Catecismo da Igreja Católica, 2062].

Os dez mandamentos, que constituem um extraordinário caminho de vida indicam as condições mais seguras para uma existência liberta da escravidão do pecado, contêm uma expressão privilegiada da lei natural. Eles «ensinam-nos a verdadeira humanidade do homem. Iluminam os deveres essenciais e, portanto, indiretamente, os deveres fundamentais, inerentes à natureza da pessoa humana»[Catecismo da Igreja Católica, 2070]. Conotam a moral humana universal. Lembrados também por Jesus ao jovem rico do Evangelho (cf. Mt 19, 18), os dez mandamentos «constituem as regras primordiais de toda a vida social»[João Paulo II, Carta encicl. Veritatis splendor, 97].

Hoje isso quase não é lembrado, é mesmo démodé falar em moral e em valores universais. Contudo, estão inscritos no coração do ser humano, e cada homem e cada mulher pode conhecê-los e deve agir em conformidade com eles. Nós, cristãos (e também os judeus), não temos desculpa para não fazê-lo, pois nos foi dado a conhecer o próprio Deus, que nos interpela a agir em conformidade com aquilo para o que fomos criados: a perfeição (v. Mt 5,48). Não podemos concretizar essa perfeição sem Deus, pois seria usurpação: a perfeição é um atributo divino, e só com ele seremos perfeitos e chegaremos ao céu (v. Gn 11,1-9). Nesses tempos difíceis, façamos o discernimento, e não deixemos que Deus seja excluído da política, mas, ao contrário, seja a vontade divina que prevaleça, até mesmo sobre a nossa.

Pai nosso que estais nos céus,
Santificado seja o vosso nome,
Venha a nós o vosso Reino,
Seja feita a vossa vontade
Assim na terra, como no céu.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje.
Perdoai-nos as nossas ofensas
Assim como perdoamos a quem nos tem ofendido,
E não nos deixeis cair em tentação,
Mas livrai-nos do Mal. Amém!

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 18-19

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

d) Sob o signo da solidariedade, do respeito e do amor

18 A Igreja caminha com toda a humanidade ao longo das estradas da história. Ela vive no mundo e, mesmo sem ser do mundo (cf. Jo 17, 14-16), é chamada a servi-lo seguindo a própria íntima vocação. Uma tal atitude — que se pode entrever também no presente documento — apóia-se na profunda convicção de que é importante para o mundo reconhecer a Igreja como realidade e fermento da história, assim como para a Igreja não ignorar quanto tem recebido da história e do progresso do gênero humano[Gaudium et spes, 44]. O Concílio Vaticano II quis dar uma demonstração eloqüente da solidariedade, do respeito e do amor para com toda a família humana, instaurando com ela um diálogo sobre tantos problemas, «esclarecendo-os à luz do Evangelho e pondo à disposição do gênero humano o poder salvífico que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Com efeito, é a pessoa humana que se trata de salvar, é a sociedade humana que importa renovar»[Gaudium et spes, 3].

19 A Igreja, sinal na história do amor de Deus para com os homens e da vocação de todo o gênero humano à unidade na filiação do único Pai[Lumen gentium, 1], também com este documento sobre a sua doutrina social entende propor a todos os homens um humanismo à altura do desígnio de amor de Deus sobre a história, um humanismo integral e solidário, capaz de animar uma nova ordem social, econômica e política, fundada na dignidade e na liberdade de toda a pessoa humana, a se realizar na paz, na justiça e na solidariedade. Um tal humanismo pode realizar-se. A tendência à unidade «só será possível, se os indivíduos e os grupos sociais cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade os valores morais e sociais, de forma que sejam verdadeiramente homens novos e artífices de uma nova humanidade, com o necessário auxílio da graça»[Gaudium et spes, 30].

Poderíamos dizer que “a humanidade tem salvação”, ou até “um outro mundo é possível” (para agradar aos adeptos do Fórum Social Mundial). Mas, “só será possível, se os indivíduos e os grupos sociais cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade os valores morais e sociais”. Não se trata de tornar a humanidade artífice de si mesma, mas de participar do plano divino de Salvação. Essa Salvação não pode ficar restrita ao íntimo, mas deve se manifestar em cada pessoa e nos grupos e estruturas sociais:

Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade. Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. (Ef 4,22-24.5,8)

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 13-17

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

c) Ao serviço da verdade plena sobre o homem

13 Este Documento é um ato de serviço da Igreja às mulheres e aos homens do nosso tempo, aos quais oferece o patrimônio de sua doutrina social, segundo aquele estilo de diálogo com o qual o próprio Deus, no Seu Filho Unigênito feito homem, «fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14-15) e conversa com eles (cf. Bar 3, 38)»[Dei verbum, 2]. Inspirado na Constituição pastoral Gaudium et spes, também este documento põe como linha mestra de toda a exposição o homem, aquele « homem considerado na sua unidade e na sua totalidade, o homem, corpo e alma, coração e consciência, pensamento e vontade»[Gaudium et spes, 3]. Na perspectiva delineada, «nenhuma ambição terrena move a Igreja; ela tem em vista um só fim: continuar, sob o impulso do Espírito Santo, a obra do próprio Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido»[Gaudium et spes, 3].

14 Com o presente documento a Igreja entende oferecer um contributo de verdade à questão do lugar do homem na natureza e na sociedade, afrontada pelas civilizações e culturas em que se manifesta a sabedoria da humanidade. Mergulhando as raízes num passado não raro milenar, estas se manifestam nas formas da religião, da filosofia e do gênio poético de todo o tempo e de cada povo, oferecendo interpretações do universo e da convivência humana e procurando dar um sentido à existência e ao mistério que a envolve. Quem sou eu? Por que a presença da dor, do mal, da morte, malgrado todo o progresso? A que aproveitam tantas conquistas alcançadas se o seu preço não raro é insuportável? O que haverá após esta vida? Estas perguntas fundamentais caracterizam o percurso do viver humano[Gaudium et spes, 10]. Pode-se, a propósito, recordar a admonição «Conhece-te a ti mesmo», esculpida na arquitrave do templo de Delfos, que está a testemunhar a verdade basilar segundo a qual o homem, chamado a distinguir-se entre todas as criaturas, se qualifica como homem justo enquanto constitutivamente orientado a conhecer-se a si mesmo.

15 A orientação que se dá à existência, à convivência social e à história dependem, em grande parte, das respostas dadas a estas questões sobre o lugar do homem na natureza e na sociedade, às quais o presente documento entende dar o seu contributo. O significado profundo do existir humano, com efeito, se revela na livre busca da verdade, capaz de oferecer direção e plenitude à vida, busca à qual tais questões solicitam incessantemente a inteligência e a vontade do homem. Elas exprimem a natureza humana no seu nível mais alto, porque empenham a pessoa em uma resposta que mede a profundidade do seu compromisso com a própria existência. Trata-se, ademais, de interrogações essencialmente religiosas: «quando o porquê das coisas é indagado a fundo em busca da resposta última e mais exaustiva, então a razão humana atinge o seu ápice e se abre à religiosidade. Com efeito, a religiosidade representa a expressão mais elevada da pessoa humana, porque é o ápice da sua natureza racional. Brota da profunda aspiração do homem à verdade, e está na base da busca livre e pessoal que ele faz do divino»[João Paulo II, Alocução na Audiência Geral (19 de Outubro de 1983), 2].

16 As interrogações radicais, que acompanham desde os inícios o caminho dos homens, adquirem, no nosso tempo, ainda maior significância, pela vastidão dos desafios, pela novidade dos cenários, pelas opções decisivas que as atuais gerações são chamadas a efetuar.

O primeiro dentre os maiores desafios, frente aos quais a humanidade se encontra, é o da verdade mesma do ser-homem. O confim e a relação entre natureza, técnica e moral são questões que interpelam decisivamente a responsabilidade pessoal e coletiva em vista dos comportamentos que se devem ter, em face daquilo que o homem é, do que pode fazer e do que deve ser. Um segundo desafio é posto pela compreensão e pela gestão do pluralismo e das diferenças em todos os níveis: de pensamento, de opção moral, de cultura, de adesão religiosa, de filosofia do progresso humano e social. O terceiro desafio é a globalização, que tem um significado mais amplo e profundo do que o simplesmente econômico, pois que se abriu na história uma nova época, que concerne ao destino da humanidade.

17 Os discípulos de Jesus sentem-se envolvidos por estas interrogações, levam-nas eles mesmos no coração e querem empenhar-se, juntamente com todos os homens, na busca da verdade e do sentido da existência pessoal e social. Para tal busca contribuem com o seu generoso testemunho do dom que a humanidade recebeu: Deus dirigiu-lhe Sua Palavra no curso da história, antes, Ele mesmo entrou na história para dialogar com a humanidade e revelar-lhe o Seu desígnio de salvação, de justiça e de fraternidade. Em Seu Filho, Jesus Cristo, feito homem, Deus nos libertou do pecado e nos indicou o Caminho a percorrer e a meta à qual tender.

Nesse trecho, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja estabelece as bases sobre as quais dialogar com homens e mulheres de todas as realidades religiosas e eclesiais: a verdade. A verdade é o dom supremo de Deus, que se deu a conhecer em Jesus Cristo, e que o homem persegue desde os primórdios. Sua busca radical leva à religião, ainda mais frente ao progresso científico-tecnológico que não foi capaz de vencer o mal, que persiste no mundo. Nosso contexto é de se precisar redescobrir o homem, compreender e lidar com as diferenças individuais e coletivas, e levar a globalização à solidariedade, não apenas ao comércio.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 10-12

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

b) O significado do documento

10 O documento apresenta-se como um instrumento para o discernimento moral e pastoral dos complexos eventos que caracterizam o nosso tempo; como um guia para inspirar, assim no plano individual como no coletivo, comportamentos e opções que permitam a todos os homens olhar para o futuro com confiança e esperança; como um subsídio para os fiéis sobre o ensinamento da moral social. Dele pode derivar um novo compromisso capaz de responder às exigências do nosso tempo e proporcionado às necessidades e aos recursos do homem, mas sobretudo o anelo de valorizar mediante novas formas a vocação própria dos vários carismas eclesiais com vista à evangelização do social, porque « todos os membros da Igreja participam na sua dimensão secular»[Christifideles laici, 15]. O texto é proposto, enfim, como motivo de diálogo com todos aqueles que desejam sinceramente o bem do homem.

11 Os primeiros destinatários deste Documento são os Bispos, que encontrarão as formas mais adequadas para a sua difusão e correta interpretação. Pertence, com efeito, ao seu « munus docendi » ensinar que «as próprias coisas terrenas e as humanas instituições se destinam também, segundo os planos de Deus Criador, à salvação dos homens, e podem por isso contribuir imenso para a edificação do Corpo de Cristo »[Christus Dominus, 12]. Os sacerdotes, os religiosos e as religiosas e, em geral, os formadores nele encontrarão um guia seguro para o ensinamento e um instrumento de serviço pastoral. Os fiéis leigos, que buscam o Reino de Deus «ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus »[ Lumen gentium, 31], nele encontrarão luzes para o seu específico compromisso. As comunidades cristãs poderão utilizar este documento para analisar objetivamente as situações, esclarecê-las à luz das palavras imutáveis do Evangelho, haurir princípios de reflexão, critérios de julgamento e orientações para a ação[Octogésima adveniens, 4].

12 Este documento é proposto também aos irmãos de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais, aos sequazes de outras religiões, bem como a quantos, homens e mulheres de boa vontade, se empenham em servir o bem comum: queiram-no acolher como o fruto de uma experiência humana universal, constelada de inumeráveis sinais da presença do Espírito de Deus. É um tesouro de coisas novas e antigas (cf. Mt 13, 52), que a Igreja quer compartilhar, para agradecer a Deus, de quem provêm « toda dádiva boa e todo o dom perfeito » (Tg 1, 17). È um sinal de esperança o fato de que hoje as religiões e as culturas manifestem disponibilidade ao diálogo e advirtam a urgência de unir os próprios esforços para favorecer a justiça, a fraternidade, a paz e o crescimento da pessoa humana.

A Igreja Católica une em particular o próprio empenho ao esforço em campo social das demais Igrejas e Comunidades Eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como em campo prático. Juntamente com elas, a Igreja Católica está convencida de que do patrimônio comum dos ensinamentos sociais guardados pela tradição viva do povo de Deus derivem estímulos e orientações para uma colaboração cada vez mais estreita na promoção da justiça e da paz[Gaudium et spes, 92].

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja, em que pese ser destinado primeiramente aos membros da própria Igreja Católica, inclusive enquanto instituição visível, se destina ao diálogo e à cooperação com outras igrejas cristãs, seguidores de outras religiões e todas as pessoas de boa vontade. Nesse mundo tenebroso (Ef 6,12), é um esperança no destino terreno do homem. Devemos buscar que o Reino de Deus se realize nesta terra, ainda que não se manifeste em toda a sua glória, que é do mundo que virá (v. IJo 3). Para isto, é também “sinal de esperança o fato de que hoje as religiões e as culturas manifestem disponibilidade ao diálogo e advirtam a urgência de unir os próprios esforços para favorecer a justiça, a fraternidade, a paz e o crescimento da pessoa humana.”

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 7-9

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

b) O significado do documento

7O cristão sabe poder encontrar na doutrina social da Igreja os princípios de reflexão, os critérios de julgamento e as diretrizes de ação donde partir para promover esse humanismo integral e solidário.Difundir tal doutrina constitui, portanto, uma autêntica prioridade pastoral, de modo que as pessoas, por ela iluminadas, se tornem capazes de interpretar a realidade de hoje e de procurar caminhos apropriados para a ação: « O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja »[Sollicitudo rei socialis, 41].

Nesta perspectiva, pareceu muito útil a publicação de um documento que ilustrasseas linhas fundamentais da doutrina social da Igreja e a relação que há entre esta doutrina e a nova evangelização[Ecclesia in America, 54]. O Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, que o elaborou e assume plena responsabilidade por ele, se valeu para tal fim de uma ampla consulta, envolvendo os seus Membros e Consultores, alguns Dicastérios da Cúria Romana, Conferências Episcopais de vários países, Bispos e peritos nas questões tratadas.

8Este Documento entende apresentar de maneira abrangente e orgânica, se bem que sinteticamente, o ensinamento social da Igreja, fruto da sapiente reflexão magisterial e expressão do constante empenho da Igreja na fidelidade à Graça da salvação de Cristo e na amorosa solicitude pela sorte da humanidade. Os aspectos teológicos, filosóficos, morais, culturais e pastorais mais relevantes deste ensinamento são aqui organicamente evocados em relação às questões sociais. Destarte é testemunhada a fecundidade do encontro entre o Evangelho e os problemas com que se depara o homem no seu caminho histórico.

No estudo do Compêndio será importante levar em conta que as citações dos textos do Magistério são extraídas de documentos de vário grau de autoridade. Ao lado dos documentos conciliares e das encíclicas, figuram também discursos Pontifícios ou documentos elaborados pelos Dicastérios da Santa Sé. Como se sabe, mas é oportuno realçá-lo, o leitor deve estar consciente de que se trata de níveis distintos de ensinamento. O documento, que se limita a oferecer uma exposição das linhas fundamentais da doutrina social, deixa às Conferências Episcopais a responsabilidade de fazer as oportunas aplicações requeridas pelas diversas situações locais[Ecclesia in America, 54].

9 O documento oferece um quadro abrangente das linhas fundamentais do «corpus» doutrinal do ensinamento social católico. Tal quadro consente afrontar adequadamente as questões sociais do nosso tempo, que é mister enfrentar com uma adequada visão de conjunto, porque se caracterizam como questões cada vez mais interconexas, que se condicionam reciprocamente e que sempre mais dizem respeito a toda a família humana. A exposição dos princípios da doutrina social da Igreja entende sugerir um método orgânico na busca de soluções aos problemas, de sorte que o discernimento, o juízo e as opções sejam mais consentâneas com a realidade e a solidariedade e a esperança possam incidir com eficácia também nas complexas situações hodiernas. Os princípios, efetivamente, se evocam e iluminam uns aos outros, na medida em que exprimem a antropologia cristã[Centesimus annus, 55], fruto da Revelação do amor que Deus tem para com a pessoa humana. Tenha-se, entretanto, na devida consideração que o transcurso do tempo e a mudança dos contextos sociais requererão constantes e atualizadas reflexões sobre os vários argumentos aqui expostos, para interpretar os novos sinais dos tempos.

Como se vê, a Igreja não pretende, com o compêndio de sua doutrina social, ditar que o cristão deve votar ou apoiar tal ou qual partido, ou mesmo tal ou qual tese sobre as questões seculares. Ela apresenta, isto sim, subsídios de forma organizada para tratar “questões cada vez mais interconexas, que se condicionam reciprocamente e que sempre mais dizem respeito à família humana”, isto é, à sociedade. Assim, muitas vezes restará espaço para dissenção entre os cristãos, e isso até mesmo porque cada um recebe do Espírito Santo aquilo que lhe convém (1Cor 12,4-27). Por vezes, a ênfase de um em uma questão e a de outro, em outra, são devidas a diferentes maneiras de abordar o mesmo Evangelho. Isso não deve dar margem ao relativismo, a achar que qualquer coisa vale em nome do “carisma”. Ao contrário, visões diferentes devem nos ajudar a discernir quem e quais propostas melhor se aproximam do candidato “ideal”. Somos homens e mulheres. Não conhecemos o futuro, nem as intenções por trás das palavras. Não podemos, por nós mesmos, fazer a escolha ideal. Mas, temos que fazer o possível para, à luz do Evangelho, buscar a realização do Reino de Deus. E rezar, rezar e rezar.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 5-6

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

a) No alvorecer do terceiro milênio

5 O amor tem diante de si um vasto campo de trabalho e a Igreja, nesse campo, quer estar presente também com a sua doutrina social, que diz respeito ao homem todo e se volve a todos os homens. Tantos irmãos necessitados estão à espera de ajuda, tantos oprimidos esperam por justiça, tantos desempregados à espera de trabalho, tantos povos esperam por respeito: «Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde abrigar-se? E o cenário da pobreza poderá ampliar-se indefinidamente, se às antigas pobrezas acrescentarmos as novas que freqüentemente atingem mesmo os ambientes e categorias dotadas de recursos econômicos, mas sujeitos ao desespero da falta de sentido, à tentação da droga, à solidão na velhice ou na doença, à marginalização ou à discriminação social. […] E como ficar indiferentes diante das perspectivas dum desequilíbrio ecológico, que torna inabitáveis e hostis ao homem vastas áreas do planeta? Ou em face dos problemas da paz, freqüentemente ameaçada com o íncubo de guerras catastróficas? Ou frente ao vilipêndio dos direitos humanos fundamentais de tantas pessoas, especialmente das crianças? »[Novo millennio ineunte, 50-51].

6 O amor cristão move à denúncia, à proposta e ao compromisso de elaboração de projetos em campo cultural e social, a uma operosidade concreta e ativa, que impulsione a todos os que tomam sinceramente a peito a sorte do homem a oferecer o próprio contributo. A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é freqüentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum. Estupefatos pelas multíplices inovações tecnológicas, os homens do nosso tempo desejam ardentemente que o progresso seja votado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e de amanhã.

O cristão não pode ficar parado diante da injustiça e do mal. Ao contrário, movido pelo amor, deve procurar contribuir para a construção de uma sociedade solidária e que promova o ser humano em todos os seus aspectos: econômico, cultural, religioso etc.