2.º domingo da quaresma – a Transfiguração de Jesus Cristo

São riquíssimos os textos lidos neste domingo na missa. Abordarei aqui e nas próximas postagens alguns aspectos teológicos dos mesmos. A leitura do Evangelho foi tirada de Lc 9 28b-36, que possui paralelos em Mt 17,1-9 e Mc 9,2-10:

Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e subiu ao monte para orar. Enquanto orava, transformou-se o seu rosto e as suas vestes tornaram-se resplandecentes de brancura. E eis que falavam com ele dois personagens: eram Moisés e Elias, que apareceram envoltos em glória, e falavam da morte dele, que se havia de cumprir em Jerusalém. Entretanto, Pedro e seus companheiros tinham-se deixado vencer pelo sono; ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois personagens em sua companhia. Quando estes se apartaram de Jesus, Pedro disse: “Mestre, é bom estarmos aqui. Podemos levantar três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias!…”. Ele não sabia o que dizia. Enquanto ainda assim falava, veio uma nuvem e encobriu-os com a sua sombra; e os seus discípulos, vendo-os desaparecer na nuvem, tiveram um grande pavor. Então da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu filho muito amado; ouvi-o!”. E, enquanto ainda ressoava esta voz, achou-se Jesus sozinho. Os discípulos calaram-se e a ninguém disseram naqueles dias coisa alguma do que tinham visto. [Lc 9,28b-36]

Muitos cientistas perscrutam o cosmos em busca da origem do universo. Seus esforços, porém, são inúteis, porque a matéria que enxergam está submetida ao tempo, e portanto precisa sempre de um precedente e leva sempre a uma consequência. Enquanto procurarem nela, sempre haverá uma origem anterior a ser procurada. Nessa passagem bíblica, porém, a origem última de tudo o que existe, aquele que dá existência a tudo (Cl 1,15-17), manifesta-se em sua glória.

O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida – porque a vida se manifestou, e nós a temos visto; damos testemunho e vos anunciamos a vida eterna, que estava no Pai e que se nos manifestou -, o que vimos e ouvimos nós vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco. [1Jo 1,1s]

Foi a própria vida que se manifestou no monte, revelando sua glória. Veja bem que, dentre os homens, apenas Jesus Cristo manifestou sua glória, pois a ele, que é Deus com o Pai e o Espírito Santo, a glória pertence. Mas também estes dois se manifestaram, repetindo assim o testemunho dado quando do batismo de Cristo (Mt 3,16s; Jo 1,32-34): “Eis meu filho amado”; o Espírito, que se havia manifestado como pomba, aparece como nuvem, como sopro (cf. Catecismo da Igreja Católica [CEC], 554-556). A tenda da glória de Deus (v. Ex 25,8; 33,7-11) está aí, por isso Pedro “não sabia o que dizia” – já não é mais necessário erguer uma tenda ou um templo para que Deus nele habite, pois Deus já está conosco (cf. Mt 1,23; Ap 21,3).

É loucura, portanto, procurar a origem de tudo nas coisas passageiras, quando a própria Palavra que tudo criou e que tudo sustenta se manifestou a nós, como conhecemos do testemunho dos apóstolos e da Escritura. E mais ainda, o destino de tudo também nos foi aí revelado, como ouvimos na segunda leitura:

Irmãos, sede meus imitadores, e olhai atentamente para os que vivem segundo o exemplo que nós vos damos. Porque há muitos por aí, de quem repetidas vezes vos tenho falado e agora o digo chorando, que se portam como inimigos da cruz de Cristo, e cujo destino é a perdição, cujo deus é o ventre, para quem a própria ignomínia é causa de envaidecimento, e só têm prazer no que é terreno. Nós, porém, somos cidadãos dos céus. É de lá que ansiosamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura.

Portanto, meus muito amados e saudosos irmãos, alegria e coroa minha, continuai assim firmes no Senhor, caríssimos. [Fl 3,174,1]

Somos destinados, portanto, à glória de Cristo, ao qual seremos tornados semelhantes pelo poder de Deus, se procurarmos imitá-lo. Jesus Cristo é a origem e o fim de tudo (Cl 1,16; Ap 1,8; 22,13). Não há que se procurar origem e finalidade em outro lugar, se não se quiser enganar.

Advento

Já chegamos à metade da primeira semana do advento. Novo tempo para a Igreja, que inicia mais um ano litúrgico, e que deve ser novo tempo para cada um de seus membros. Preparamo-nos agora para celebrar a primeira vinda de Jesus Cristo, o Filho de Deus, enquanto aguardamos que retorne em sua glória (Prefácio Eucarístico do Advento I). Espero que tenha ido à missa do domingo passado, primeiro desse novo tempo, e, se você não pôde ir, não tarde em procurar e beber da fonte da vida cristã, a liturgia, o serviço de Deus e dos homens, em especial a Sagrada Eucaristia (CEC, 1069-1070; SC, 7-10).

Se você foi à missa, ouviu a leitura do Evangelho, que diz: “Então, verão o Filho do Homem vir sobre uma nuvem com grande glória e majestade. […] Velai sobre vós mesmos, para que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso do comer, com a embriaguez e com as preocupações da vida; para que aquele dia não vos pegue de improviso. Como um laço cairá sobre aqueles que habitam a face de toda a terra. Vigiai, pois, em todo o tempo e orai, a fim de que vos torneis dignos de escapar a todos esses males que hão de acontecer, e de vos apresentar de pé diante do Filho do Homem.” (Lc 21,27.34-36)

E como poderemos nos apresentar de pé diante de Cristo, quando retornar em sua glória? Sendo “imitadores de Deus, como filhos muito amados” (Ef 5,1) e membros de seu corpo, que é a Igreja. “Certamente, ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e a trata, como Cristo faz à sua Igreja – porque somos membros de seu corpo.” (Ef 5,29s). São Cirilo de Jerusalém, falando sobre recebermos o corpo e o sangue de Cristo na eucaristia, disse que o fiel se torna, “tomando o corpo e o sangue de Cristo, concorpóreo e consangüíneo com Cristo. Assim nos tornamos portadores de Cristo (cristóforos), sendo nossos membros penetrados por seu corpo e sangue. Desse modo, como diz o bem-aventurado Pedro, ‘tornamo-nos partícipes da natureza divina’ [2Pd 1,4].” (S. Cirilo de Jerusalém, quarta catequese mistagógica, 3.)

Dessa maneira, somos conformados à imagem de Cristo, para o que fomos predestinados (Rm 8,29), e ouvimos as palavras do apóstolo:

Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento de vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade. [Ef 4,21-24]

“O Deus da paz vos conceda santidade perfeita. Que todo o vosso ser, espírito, alma e corpo, seja conservado irrepreensível para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo!” (1Ts 5,23)

“Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo”

No calendário litúrgico, os dias 14, 15 e 16 de setembro são o que poderíamos chamar “tríduo doloroso”. São três dias em que, provavelmente por coincidência, primeiro se exalta a Santa Cruz de Cristo, depois a memória de Nossa Senhora das Dores, e, por fim, São Cornélio, papa, e São Cipriano, bispo, ambos mártires. São Paulo diz aos colossenses: “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O que falta às tribulações de Cristo, completo em minha carne, por seu corpo que é a Igreja.” (Cl 1,24)

É claro que não se trata de alargar a salvação. Esta é completa em Cristo. Em Cristo, pela graça santificante do Espírito Santo, chegamos ao Pai e participamos da vida divina (Catecismo da Igreja Católica [CIC], 1999). Também nossa redenção é completa em Cristo, que, sendo Deus, uniu-se à humanidade nascendo de uma Virgem, morreu em obediência ao Pai e inocente, castigado por nossos crimes, abriu as portas do Céu aos justos que o precederam, ressuscitou e, elevado ao Céu, elevou ao Pai a nossa natureza humana (Is 53; Jo 1,1-14; Rm 5,19; Cl 1,15-23; 2Pd 1,4; símbolos Apostólico e Niceno-Constantinopolitano; CIC 422-667).

O que fala, então, São Paulo a respeito do sofrimento humano? O beato João Paulo II nos explica muito bem, em sua carta apostólica Salvifici Doloris (23):

Aqueles que participam dos sofrimentos de Cristo têm diante dos olhos o mistério pascal da Cruz e da Ressurreição, no qual Cristo, numa primeira fase, desce até às últimas conseqüências da debilidade e da impotência humana: efetivamente, morre pregado na Cruz. Mas dado que nesta fraqueza se realiza ao mesmo tempo a sua elevação, confirmada pela força da Ressurreição, isso significa que as fraquezas de todos os sofrimentos humanos podem ser penetradas pela mesma potência de Deus, manifestada pela Cruz de Cristo. Nesta concepção, sofrer significa tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade. Nele, Deus confirmou que quer operar de um modo especial por meio do sofrimento, que é a fraqueza e o despojamento do homem e ainda, que é precisamente nesta fraqueza e neste despojamento que ele quer manifestar o seu poder. Compreende-se, deste modo, a recomendação da primeira Carta de São Pedro: Se alguém “sofre por ser cristão, não se envergonhe, mas dê glória a Deus por este título” [1Pd 4,16].

Ademais, se há “um só corpo e um só espírito” (Ef 4,4), se somos todos membros do Corpo de Cristo (Rm 12,4s; 1Cor 10,17) toda vez que alguém deposita em Deus sua esperança, é todo o Corpo de Cristo que se beneficia. Toda vez que alguém perdura na fé mesmo quando os sofrimentos o põem à prova, é todo o Corpo de Cristo que cresce. “O sangue dos mártires é a semente de novos cristãos”, disse Tertuliano. Essa é a comunhão dos santos.

É dessa solidariedade na Cruz que já o justo Simeão falava quando disse para Maria: “uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2,35). Assim podemos pedir a Deus: “Elevai-nos pela cruz até o vosso Reino!” (Liturgia das horas [LH], próprio da Exaltação da Santa Cruz, II Vésperas). Por isso pedimos a Deus que dê a sua Igreja, “unida a Maria na paixão de Cristo, participar da ressurreição do Senhor” (LH, próprio de Nossa Senhora das Dores, Laudes). Como diz São Paulo aos Coríntios: “Com efeito, à medida que em nós crescem os sofrimentos de Cristo, crescem também por Cristo as nossas consolações” (2Cor 1,5).

Pelo que tudo suporto por amor dos escolhidos, para que também eles consigam a salvação em Jesus Cristo, com a glória eterna. Eis uma verdade absolutamente certa:

Se morrermos com ele,
com ele viveremos.
Se soubermos perseverar,
com ele reinaremos.
Se, porém, o renegarmos,
ele nos renegará.
Se formos infiéis…
ele continua fiel,
e não pode desdizer-se.

(2Tm 2,10-13)

Imitando Cristo

Livro I – Avisos úteis para a vida espiritual

Capítulo 1 – Da imitação de Cristo e desprezo de todas as vaidades do mundo

1. Quem me segue não anda nas trevas, diz o Senhor (Jo 8,12). São estas as palavras de Cristo, pelas quais somos advertidos que imitemos sua vida e seus costumes, se verdadeiramente queremos ser iluminados e livres de toda cegueira de coração. Seja, pois, o nosso principal empenho meditar sobre a vida de Jesus Cristo.

2. A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos, e quem tiver seu espírito encontrará nela um maná escondido. Sucede, porém, que muitos, embora ouçam frequentemente o Evangelho, sentem nele pouco enlevo: é que não possuem o espírito de Cristo. Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.

3. Que te aproveita discutires sabiamente sobre a SS. Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição dentro de minha alma, a saber defini-la. Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus? Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Ecl 1,2), senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.

4. Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.

5. Lembra-te a miúdo do provérbio: Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir (Ecl 1,8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.

Assim começa a Imitação de Cristo, famoso livro de Tomás de Kempis, monge agostiniano do século XV. Parece-me um livro sapiencial, destinado a aconselhar seus leitores – não diferente, nesse único aspecto, de O Príncipe, de seu quase contemporâneo Nicolau Maquiavel. Um estilo que não se encontra muito hoje em dia.

Começa com um chamado à humildade, pois grande característica de Cristo é ter sido humilde, humilde a tal ponto que, sendo Deus, fez-se homem – e, sendo homem, fez-se o menor dentre eles, a ponto de morrer por nós na cruz, no que foi elevado à maior das dignidades e recebeu um nome diante do qual todo joelho se dobra, no céu, na terra e nos infernos (Fl 2,5-11). Se queremos participar da vida de Cristo, percamos então a nossa (Lc 9,23-25) de tal maneira que não sejamos mais nós que agimos, mas Cristo que age em nós (Gl 2,19-20).

Falando de mim mesmo, poderia dizer: de que me serve escrever tais palavras? De nada, se não forem dirigidas a Deus, que pode fazer bom uso delas. É Deus quem pode atrair as pessoas para a Palavra (Jo 6,44-46), não as palavras passageiras de um pecador. Foi bom saber, recentemente, que uma postagem foi recebida assim por uma afilhada minha. Que isso aconteça muitas vezes pela graça de Deus, não por meu esforço! Amém!