Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.º 2-4

 

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

a) No alvorecer do terceiro milênio

2 Neste alvorecer do Terceiro Milênio, a Igreja não se cansa de anunciar o Evangelho que propicia salvação e autêntica liberdade, mesmo nas coisas temporais, recordando a solene recomendação dirigida por São Paulo ao discípulo Timóteo: «Prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, ameaça, exorta com toda paciência e empenho de instruir. Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajustarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas. Tu, porém, sê prudente em tudo, paciente nos sofrimentos, cumpre a missão de pregador do Evangelho, consagra-te ao teu ministério» (2 Tm 4, 2-5).

3 Aos homens e às mulheres do nosso tempo, seus companheiros de viagem, a Igreja oferece também a sua doutrina social. De fato, quando a Igreja «cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho, testemunha ao homem, em nome de Cristo, sua dignidade própria e sua vocação à comunhão de pessoas, ensina-lhes as exigências da justiça e da paz, de acordo com a sabedoria divina»[Catecismo da Igreja Católica, 2419]. Tal doutrina possui uma profunda unidade, que provém da Fé em uma salvação integral, da Esperança em uma justiça plena, da Caridade que torna todos os homens verdadeiramente irmãos em Cristo. Ela é expressão do amor de Deus pelo mundo, que Ele amou até dar «o seu Filho único» (Jo 3, 16). A lei nova do amor abrange a humanidade toda e não conhece confins, pois o anúncio da salvação de Cristo se estende «até aos confins do mundo » (At 1, 8).

4 Ao descobrir-se amado por Deus, o homem compreende a própria dignidade transcendente, aprende a não se contentar de si e a encontrar o outro, em uma rede de relações cada vez mais autenticamente humanas. Feitos novos pelo amor de Deus, os homens são capacitados a transformar as regras e a qualidade das relações, inclusive as estruturas sociais: são pessoas capazes de levar a paz onde há conflitos, de construir e cultivar relações fraternas onde há ódio, de buscar a justiça onde prevalece a exploração do homem pelo homem. Somente o amor é capaz de transformar de modo radical as relações que os seres humanos têm entre si. Inserido nesta perspectiva, todo o homem de boa vontade pode entrever os vastos horizontes da justiça e do progresso humano na verdade e no bem.

A Igreja tem uma doutrina social porque essa é a sua missão: pregar o Evangelho, a boa notícia de Jesus Cristo, filho de Deus encarnado, que veio nos salvar integralmente. Seu papel é testemunhar o amor de Deus, anunciar a nova lei do amor, que constrói relações fraternas onde há ódio, busca justiça onde há exploração do homem pelo homem. O cristão não deve apoiar, nem se contentar com estruturas de pecado, mas procurar sua transformação em bases evangélicas, no amor, na justiça, na verdade, no bem. Para ficar com as palavras do frei Antônio Moser:

A conversão evangélica, como o próprio Evangelho, tem dimensões universais. Converter-se ao Reino será sempre e em todas as circunstâncias assumir a causa que Cristo assumiu. Entretanto, assim como o Evangelho, sempre idêntico, deve encarnar-se nas situações diferentes, assim também a conversão. Se não quisermos ficar no plano das generalidades, devemos admitir que na medida em que a conversão se concretiza, se historiza, ela assume tonalidades diferentes. Aqui ela tem uma prioridade; ali, outra. Assim, à luz do que vimos com respeito ao pecado socioestrutural, os cristãos são chamados a seguir o Cristo, a anunciar as bem-aventuranças do Reino e, portanto, a denunciar as contradições do sistema socioeconômico e político responsável pela miséria em que vive a absoluta maioria. No desempenho de sua missão, a exemplo de Jesus, o cristão tem de comprometer-se com a causa dos pobres (Mt 11,5; Lc 4,18), cuja situação é um eloquente testemunho do pecado que se instalou em nossa sociedade. (O pecado: do descrédito ao aprofundamento. 5. ed. p. 166.)

Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.º 1

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

INTRODUÇÃO

UM HUMANISMO INTEGRAL E SOLIDÁRIO

a) No alvorecer do terceiro milênio

1 A Igreja, povo peregrino, entra no terceiro milênio da era cristã conduzida por Cristo, o «Grande Pastor»(Hb 13, 20): Ele é a «Porta Santa» (cf. Jo 10, 9) que transpusemos durante o Grande Jubileu do ano 2000 [Cf. Novo millennio ineunte, 1]. Jesus Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. Jo 14, 6): contemplando o Rosto do Senhor, confirmamos a nossa fé e a nossa esperança n’Ele, único Salvador e fim da história.

A Igreja continua a interpelar todos os povos e todas as nações, porque somente no nome de Cristo a salvação é dada ao homem. A salvação, que o Senhor Jesus nos conquistou por um “alto preço” (cf. 1Cor 6, 20; 1Pd 1, 18-19), se realiza na vida nova que espera os justos após a morte, mas abrange também este mundo (cf. 1Cor 7, 31) nas realidades da economia e do trabalho, da sociedade e da política, da técnica e da comunicação, da comunidade internacional e das relações entre as culturas e os povos. «Jesus veio trazer a salvação integral, que abrange o homem todo e todos os homens, abrindo-lhes os horizontes admiráveis da filiação divina»[Redemptoris missio, 11].

Jesus Cristo é o fim da história. Ele é o princípio e o fim, o Alfa e o Ômega (Ap 1,8; 21,6; 22,13). Por ele e para ele devemos nos orientar e nos dirigir, e toda nossa ação deve ser para ele, com ele, e conforme ele. Na política, inclusive nas eleições, devemos dizer: “não seja feita a minha vontade, mas a vossa” (v. Mc 14,36). Devemos, portanto, buscar a salvação integral, em todos os aspectos da vida humana, inclusive o econômico, o político, o cultural etc., propiciando a realização da filiação divina. Tenhamos isso em mente ao escolher nossos candidatos!

A Virgem Maria e a paz

Hoje, 1.º de janeiro, é dia de celebrar a Virgem Maria, Mãe de Deus, e é também Dia Mundial da Paz. Curiosos os caminhos da história que colocaram no mesmo dia a celebração daquela que é, pela maternidade, a Rainha da Paz, e a festa daqueles que querem um mundo de paz e de justiça.

Assim profetizou Miqueias, há milhares de anos:

Deus deixará seu povo ao abandono, até ao tempo em que uma mãe der à luz; e o resto de seus irmãos se voltará para os filhos de Israel. Ele não recuará, apascentará com a força do Senhor e com a majestade do nome do Senhor seu Deus; e ele será a paz. [Mq 5,2-3a.4a]

“O resto de seus irmãos se voltará para os filhos de Israel”, porque Jesus Cristo não veio fazer distinção entre Israel e Judá, mas veio buscar suas ovelhas no aprisco de todos os povos (Jo 10,16), e porque, recebendo d’Ele a filiação divina, “já não há judeu, nem grego”, mas somos um só em Cristo (Gl 3,28s). Como alguém, nessa situação, poderia buscar a guerra, a iniquidade, a discórdia?

Infelizmente, isso existe, pois nem todos reconhecem que Deus veio ao mundo para nos tornar seus filhos, e mesmo muitos que professam essa verdade com a boca, não o fazem com o espírito e com as obras. É por isso que a Igreja, mesmo na solenidade da Virgem Maria, Mãe de Deus, não esquece da buscar a paz, e, com sua doutrina social e o Conselho Pontifício “Justiça e Paz” (e as comissões episcopais), continua perseguindo uma sociedade que corresponda aos ensinamentos evangélicos.

Assim, nesse novo ano, desejo a todos os leitores que celebrem a maternidade divina de Maria, vivam conformes a Jesus Cristo – Caminho, Verdade e Vida – e busquem sempre a paz entre os irmãos. Amém!

Pelos políticos – intenções do papa para setembro

É com um pouco de atraso, mas, no fim das contas, em uma data muito propícia, que falo das intenções gerais do papa para este mês: pelos políticos. Hoje é dia de comemorar a formação política do Brasil, com seus percalços e suas conquistas, e é também mês de campanha eleitoral nos municípios. Tempo adequado para rezarmos pelos nossos representantes nos governos e casas legislativas.

“O que se exige dos administradores é que sejam fiéis”, diz São Paulo na leitura da missa de hoje (I Cor 4,2). Fiéis, é claro, àqueles que lhes conferem o poder da administração. Como na parábola do dinheiro emprestado (Lc 19,11ss), em que Jesus Cristo nos ensina que devemos trabalhar, administrando os dons que nos deu, para que venha o seu Reino a muitos, também os governantes, a quem confiamos a administração das coisas públicas, devem agir para a expansão do bem comum.

Mais especificamente, o papa ora este mês para que os políticos hajam com honestidade, integridade e amor à verdade. Deus é a verdade (Jo 14,6) e nos ama integralmente, a ponto de oferecer-se, na pessoa do Filho, pelo nosso bem (Jo 3,16). A verdade liberta o homem (Jo 8,32), e o serviço à verdade é o serviço ao desenvolvimento humano integral (Caritas in veritate, 9).

Rezemos, então, para que, no amor e na verdade, os políticos busquem o desenvolvimento de cada homem e de cada mulher, bem como da humanidade inteira. Que os eleitores, em especial nos municípios brasileiros, saibam escolher bem seus representantes, e que estes sejam bons administradores do bem comum. Que os governantes nos estados, no Distrito Federal e na República promovam a verdadeira realização humana. E que, especialmente no plano internacional, as “estéreis oposições de forças dêem lugar à colaboração amiga, pacífica e desinteressada, a favor de um desenvolvimento solidário da humanidade, onde todos os homens possam realizar-se” (Populorum progressio, 84). Amém.

O Terceiro Reich e o mal

O texto que transcreverei a seguir é quase um tratado de demonologia política. Meu propósito em publicá-lo aqui, porém, não é dizer que a política deva ser abominada, ou que todo mal seria uma questão de influência demoníaca – até porque a humanidade já tem causado muito mal por si só. Contudo, como historiador, nunca consegui explicar adequadamente como os nazistas conseguiram não apenas tomar o poder na Alemanha, mas também impor uma ideologia de ódio absoluto.

É verdade que a Alemanha não se resume, nem se resumiu ao nazismo. Nessa mesma época, vemos heróis e mártires como santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein, doutora em filosofia, judia e convertida do ateísmo para o cristianismo, assassinada em Auschwitz-Birkenau) e muitos outros, alguns famosos, mas muitos anônimos. Ainda assim, o nazismo conseguiu implementar com sucesso um Estado movido a ódio.

É bem verdade que esse fenômeno surgiu numa sociedade imbuída de um antissemitismo atroz e antigo, profundamente enraizado em sua cultura. Contudo, não foram só os semitas as vítimas do nazismo. As primeiras foram os comunistas, depois vieram os ciganos, os homossexuais, os judeus… Enfim, uma política de ódio, e que conquistou, pregando o ódio, um terço dos eleitores alemães.

Esse texto também ilustra algumas questões que certos cristãos insistem em não ver, e assim não distinguir bem entre o mal absoluto e boas intenções que por vezes se desviam até mesmo pela falta de apoio e diálogo mais intenso dos cristãos em geral – além de condições históricas muito difíceis de superar.

Vamos logo ao texto, um trecho de Summa daemoniaca, do padre José Antonio Fortea, teólogo e exorcista na dioecese de Alcalá de Henares, na Espanha. A edição é a de 2010, pela editora Palavra e Prece.

O Terceiro Reich e o mal

Há muitos estudos sobre a Alemanha nacional-socialista, estudos políticos, econômicos, sociais, militares… mas se houver uma análise da realidade que é essencial e inevitável será a análise da religião. Em minha opinião, a Alemanha de Hitler é o exemplo mais claro de como o mal pode estender-se não apenas a indivíduos, mas a toda uma sociedade, e iniciar um processo de degradação moral crescente cada vez mais aberrante. Houve outras sociedades em que o mal assumiu seu poder, mas o Terceiro Reich foi a versão mais completa de toda uma nação mergulhada nas trevas da iniquidade.

É importante deixar claro que, para o mal tomar as rédeas de uma sociedade, sem impedimentos, não é necessário que todos os cidadãos compartilhem desse mal. É suficiente que uma certa porcentagem de cidadãos plenamente em degradação, alcancem o que chamamos de uma massa crítica, cuja força joga a sociedade no abismo. Por exemplo, basta que 25% dos habitantes de uma nação sejam completamente dominados pelo mal, para que essa quarta parte da população convença a outra parte a apoiá-la, e, por sua vez, contamine a outra quarta parte. Nunca uma sociedade vai sucumbir aos 100%. A percentagem de totalmente envenenados por uma doutrina será sempre muito inferior a dos parcialmente intoxicados. E a parte dos que se calarão será consideravelmente maior. Sempre que falamos sobre a Alemanha de Hitler falamos de uma situação geográfica e temporal, e mesmo no auge do nacional-socialismo foram inúmeros os que nunca apoiaram o programa. Deve ser lembrado que, antes de Hitler chegar ao poder, nunca conseguiu atingir mais de 37% dos votos em eleições livres. Mas alcançada a massa crítica, como infelizmente aconteceu: os 63% da população restante (querendo ou não) foram arrastados para o abismo nos anos seguintes.

Feitas essas considerações, acredito que a sociedade de Hitler trouxe consigo um mal muito maior do que trouxe a União Soviética. O marxismo sempre foi uma doutrina mais benigna que o nacional socialismo. Marx sempre foi melhor do que Nietzche. Pelo menos Marx procurou o bem dos pobres, uma sociedade justa. O nacional-socialismo, doutrina verdadeiramente demoníaca, nunca buscou isso. Desde o início, nunca escondeu a sociedade que pretendia no futuro, uma sociedade em que uns povos se submeteriam a outros povos, uma nova ordem na qual as elites dominariam, inclusive, o resto da população alemã. Uma sociedade militarista na qual as camadas mais fracas da população deveriam sucumbir pelo bem de uma nova ordem que foi apresentada a todos. O nacional-socialismo promoveu o ocultismo dentro das SS, começou uma verdadeira idolatria ao Fuhrer, ensinou as pessoas a violar os valores da religião como valores burgueses, rejeitou os Dez Mandamentos como os inconvenientes de uma mentalidade fraca. Se o marxismo trouxe uma opressão terrível, uma espantosa perseguição, do ponto de vista intelectual, o nacional-socialismo era uma doutrina que parecia ter sido tirada do Inferno e ensinada pelos próprios demônios. Na verdade, os campos de concentração não foram outra coisa que simplesmente a construção de infernos em miniatura, onde homens-demônios destruíam o homem moldado à imagem de Deus. O fato de que os uniformes da SS eram todos pretos, que tinha uma caveira sobre seus bonés e uma nova cruz (que não era cristã), em seus braceletes não eram casualidades para os crentes. Os membros das SS, que seriam a elite da Nova Ordem, aprendizes de assassinos, aprendizes de bruxos, inimigos ferozes do cristianismo, estavam debaixo das ordens desse arquidemônio que era Heinrich Himmler. Embora ao ler a biografia desses dois homens, Hitler e Himmler, claramente se descobrirá como o último, todavia, estava abaixo da maldade de seu Führer que exerceu algo parecido a um encantamento, um feitiço que subjugou com os laços da mentira as almas de toda a condição.

Aos olhos de Hitler se concentravam os destinos indubitáveis de uma iniquidade como poucas vezes foi vista. Sua boca tornou-se a boca através da qual o mal falava. Nos filmes ele é visto acariciando uma criança, sorrindo para uma garota que lhe dá um buquê de flores, mas por detrás desse sorriso há um rosto e um olhar para arrogância em vigor, ódio crueldade, raiva, mentiras, a rejeição de Deus, todos os pecados.

Podemos ver uma parte de tudo isso em Stalin, um terrível Pol-Pot, podemos vislumbrar um esboço do Terceiro Reich na Revolução Francesa, em fogo e sangue das colunas de dezenas de milhares de homens enviados para a morte, tudo para a glória de uma França napoleônica. Mas o modelo mais perfeito de domínio do mal encontra-se entre 1933 e 1945 na Alemanha. Um mal que não foi obra de um homem, mas o fruto da loucura coletiva que os homens, infelizmente, construíram.

Esse império perfeito do mal, tudo de “perfeito” que esse império pode se tornar no mundo teve um dos protagonistas mais conhecidos perto das informações de como o Terceiro Reich foi, antes de tudo, uma questão moral, religiosa espiritual.

Peter Padfield, em sua magnífica biografia de Himmler, iniciou seu livro de 840 páginas apresentando o futuro fundador das SS quando pequeno, como coroinha em um santuário na Baviera. E ele escreveu:

Imaginei o jovem Heinrich Himmler quando o coral de crianças se juntava à procissão. Eles vestiam roupas brancas e tinham os olhos muito graves. (…) Quando era um jovem de dezenove anos, havia escrito em seu diário: “Aconteça o que acontecer, Deus sempre te amarei e rezarei e obedecerei e defenderei a Igreja Católica, mesmo caso seja expulso dela”.

A verdade é que logo encontrou outra fé oposta à Igreja, expulsou-se voluntariamente e logo a atacou com todas suas forças, declarando que os sacerdotes eram o maior câncer que um povo podia sofrer.”(1)

A questão é se não haveria uma maneira de evitar essa situação, pois o que aconteceu a um bom menino para que se transformasse num demônio? A resposta é repetida ao longo de dois mil anos nos livros de espiritualidade e moral da Igreja. Talvez essa apelação para os elementos cristãos para compreender o III Reich pode parecer a alguns a deformação destas linhas pelo autor, por se tratar de um padre. Mas, ao contrário, longe de ser um complemento aos elementos que distorce nossa visão objetiva sobre o assunto, envolvendo alguns elementos essenciais para compreender o que realmente tinham em mente os autores da Nova Ordem. E para isso, entre os inúmeros exemplos que poderia oferecer deixo aqui apenas uma amostra.

Em 12 de setembro de 1944, quando a guerra já estava perdida e as tropas se retiraram, Kersten, médico pessoal do Chefe Supremo das SS, “fez um pedido de clemência para um grupo de 27 sacerdotes. No decurso da discussão, Himmler confessou o erro que fizeram os nazistas ao atacar a Igreja. Tornara-se claro que era mais forte do que eles e o partido e perguntou: “quando eu estiver morto, os sacerdotes também rezarão por minha alma?”(2)

Essa questão parecia a maior ironia que a história poderia render. Mas não foi só ele; Canaris no final do regime passava horas rezando em igrejas católicas. Ao contrário, Hitler foi visto ocasionalmente andando furioso e espumando pela boca.(3)

Em 1943, duas semanas após a queda de Stalingrado, o grupo chamado The White Rose imprimiu milhares de panfletos e jogou-os no pátio da Universidade de Munique. A Rosa Branca era um grupo cristão que atuou na universidade como um exemplo dos milhares de heróis alemães que fazia parte da mais nobre ala da Alemanha que nunca apoiou Hitler. Esse grupo escreveu nestes panfletos, as seguintes palavras, que são a mais lúcida síntese que já li sobre o que foi o nacional-socialismo: “Quem contou os mortos, Hitler ou Goebbels? Certamente, nenhum dos dois. (…) A dor atravessa as casas de campo da Pátria-mãe, e ninguém limpou as lágrimas das mães, mas Hitler mente àqueles que ele tomou o seu tesouro mais precioso e que levou a uma morte sem sentido. Todas as palavras que saem da boca de Hitler são mentiras. Quando diz ‘paz’, refere-se à guerra, e se da forma mais sacrílega usa o nome do Todo-Poderoso, refere-se ao poder do mal, o anjo caído, Satanás. Sua boca é a porta fedorenta do Inferno e o seu poder é degradante. Certamente, temos que travar uma batalha contra o terrorismo de Estado nacional-socialista com todos os meios à nossa disposição racional, mas quem ainda abriga qualquer dúvida sobre a existência de poderes demoníacos absolutamente ignorou o fundo metafísico dessa guerra. Por trás do concreto, por trás das percepções materiais, por trás de todas as considerações expositivas e lógicas está escondido o irracional, ou seja, a batalha contra o demônio, contra os emissários do Anticristo.”(4)

Sim, nessa guerra que estava sendo travada na Europa e em outras partes do mundo houve muitas batalhas menores, mas a síntese de tudo, o fundo de tudo, estava na guerra entre o bem e o mal, entre os apoiadores da Árvore da Vida e os seguidores da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. O conteúdo daquele folheto, que resultou na morte após terríveis torturas dos dois irmãos autores do texto, foi a síntese mais lúcida do que estava acontecendo na Europa Central. A raiz de tudo aquilo era a essência moral, o resto eram questões acidentais. Por trás do concreto, por trás dos personagens, por trás das razões menores, estava a luta entre duas visões de mundo: a visão cristã e a visão de um mundo sem Deus nem moral. Em meio a essa luta, não poderia caber meias medidas nem neutralidades, uma das duas visões de mundo e da história prevalecia sobre a outra no Velho Continente. O silêncio seria culpado. A história não perdoaria o silêncio. Graças a Deus, a semente mais perniciosa foi erradicada na base de muito sangue, mas a história teria sido diferente se alguns homens em vários países optassem por ceder, não se opor, não lutar quando já não resta mais nada a não ser lutar. Se os Estados Unidos tivessem se abstido do problema se o Reino Unido tivesse acordado uma “paz honrosa”, se alguns homens influentes optassem por uma via mais confortável, para o bem, a curto prazo; então uma nova mentalidade teria lançado suas raízes na mesma terra que viu erguer catedral atrás de catedral.

Que uma nação civilizada e culta como a Alemanha pré-Hitler, defensora dos valores da razão, cultivadora da herança clássica, de repente, caísse sob a escuridão, nos lembra que qualquer sociedade que se afaste do caminho do bem, a qualquer tempo pode cair aos encantos da iniquidade. O III Reich é um aviso, um lembrete do que aconteceu com eles, pode de novo para nós. Somos muito condescendentes com o mal da sociedade, quando este se torna generalizado. Não percebemos que a cada renúncia ao que é o caminho certo da Lei Natural, estamos um passo mais perto da situação de uma nação enfraquecida na sua consciência, que como um corpo doente, pode sucumbir à doença, em uma nova noite.

(1) Peter Padfield, Himmler, p. 3 (Madri: Editorial La Esfera de Los Livros, 2003).
(2) Peter Padfield, Himmler, p. 678 (os dados foram retirados de A. Besgen, Der stille Befehl, 12.09.1944, Munique, 1960, p. 35).
(3) Peter Padfield, Himmler, p. 642.
(4) Peter Padfield, Himmler, p. 538.

Amar os homossexuais

Eu não deveria me surpreender, nos tempos atuais, com o que li hoje. Um site “católico” teria divulgado uma lista de políticos que mereceriam o “cartão vermelho” do eleitor católico por comporem “frente organizada pelo agressivo lobby gay no Congresso Nacional que propõe, entre outras coisas, que crianças sejam doutrinadas na ideologia gayzista, que o Estado financie paradas gays e políticas de interesse do lobby, e que cidadãos sejam perseguidos e presos por se oporem a isso”. Nada mais anticristão do que dizer tais bobagens. Quem é Nosso Senhor Jesus Cristo? Como Ele agiu em sua vida terrena?

Até onde sei, Nosso Senhor não disse “Abominarás os gays, este é o maior e primeiro mandamento; o segundo, semelhante a este é: abominarás a ideologia gayzista como abominas os gays.” Não se trata apenas de um neologismo horrendo, mas de uma completa subversão das palavras de Cristo (Mt 22,37-40):

Respondeu Jesus: Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito (Dt 6,5). Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo (Lv 19,18). Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas.

Quem é o próximo, a quem devemos amar? Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), Jesus Cristo ensina que até mesmo um samaritano pode ser o próximo para um judeu – e quem mais pecador, para um judeu, do que um samaritano?

Empréstimo pseudo-evangélico

A questão “anti-gayzista” parece na verdade um empréstimo pseudo-evangélico, isto é daqueles falsos profetas que andam o tempo todo com uma bíblia debaixo do braço dizendo “Senhor, Senhor!”, mas que não fazem a vontade do Pai – esses não entrarão no Reino dos céus (Mt 7,21). Não preciso citar quem são, pois eles mesmos dão seu testemunho.

O Catecismo da Igreja Católica (CIC), ao contrário, dá exemplo da sã doutrina, plenamente de acordo com o ensinamento do verdadeiro Evangelho revelado por Deus aos seus discípulos. Após dizer que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados, ainda que sua gênese psíquica permaneça por se explicar (§ 2.357), assim afirma:

2358. Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objectivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.

2359. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã.

Isso mesmo! Os homossexuais são chamados a uma vida de santidade, tanto quanto os heterossexuais! E, mais ainda, devemos ajudá-los com uma “amizade desinteressada”! Nesse momento, São João da Cruz nos convidaria a todos para a “noite dos sentidos” e a “noite da fé”, a fim de nos fecharmos para o que nós mesmos criamos e nos abrirmos para o que vem de Deus (v. Subida do Monte Carmelo).

Quem ou o que merece o “cartão vermelho”?

Quem, na política, verdadeiramente merece o “cartão vermelho” dos católicos? Todo aquele que vai contra o amor cristão. Isso significa ir contra o respeito aos trabalhadores, às crianças, aos idosos e a todos os que se encontram em uma situação frágil em nossa sociedade, inclusive os homossexuais.

Numa sociedade em que tantos atos de homofobia ocorrem diariamente, muitas vezes ganhando as manchetes devido à violência e à arbitrariedade com que são escolhidas suas vítimas (às vezes pai e filho, ou então irmãos, porque se abraçam), não é possível a um verdadeiro cristão assistir de braços cruzados. É preciso agir e garantir os direitos humanos, inclusive alterando a legislação para que tamanha barbárie não passe impune. É o que procura fazer o PLC 122/2006, que apenas amplia a legislação penal que já combate o preconceito e a discriminação, passando a abranger também o preconceito e a discriminação contra homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e até heterossexuais, de acordo com o último relatório, de autoria da senadora Marta Suplicy.

A violência, o preconceito e a discriminação é que merecem nosso “cartão vermelho”.