Eucaristia, alimento de amor

Ontem, em sua homilia, o papa Bento XVI nos lembrou das duas dimensões do cuidado de Deus conosco. Para Deus, importa que sejamos plenos (“Todos nós recebemos da sua plenitude graça sobre graça”, testemunhava João Batista – Jo 1,16). Podemos dizer que essa graça é o cuidado do Senhor para que nada nos falte, como nas bodas de Caná, em que Jesus, a pedido de sua santíssima mãe, não deixou que faltasse o vinho da festa, e esse vinho foi o melhor (Jo 2,1-11). E a graça que está sobre essa outra é a graça maior, da nossa salvação, pois “de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3,16)

E o Verbo de Deus, que é Deus, se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1.14). O “cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29) entre nós habitou para que, por nós levantado na cruz, tenhamos a vida eterna (Jo 3,14-15). Importava que o Filho de Deus fosse também Filho do Homem, para que, tendo nós sido por um homem condenados, por um homem fôssemos salvos (Rm 5). E esse homem não é ninguém menos que o Verbo de Deus, unido ao homem e a seu destino.

Sendo homem, não poderia se esquivar do cuidado com o homem – e é esse cuidado que vemos nas bodas de Caná (Jo 2,1-11) e na multiplicação dos pães (Jo 6,1-14). A Deus importa o bem-estar do homem, inclusive o bem-estar de seu corpo, pois o ser humano não é apenas espiritual. Foi da vontade de Deus que, sendo criaturas também materiais, cuidássemos de sua criação (Gn 1,26-30) e, sendo essa a vontade d’Ele, Ele mesmo cuida de nós para que nada nos falte, nem o material, nem o mais importante, o espiritual (Mt 6,25-34). É esse mesmo cuidado, nas medidas das nossas limitações, que devemos ter com o próximo (Mt 20,25-28). Precisamos carregar também a suave cruz de Cristo (Mt 11,28-30)!

Angelus: “Combater as desigualdades com as armas do amor”

2012-07-29 Rádio Vaticana
Castel Gandolfo (RV) – “Que jamais falte a ninguém o pão necessário para uma vida digna, e sejam abatidas as desigualdades não com as armas da violência, mas com a compartilha e o amor.”
A cena da multiplicação dos pães, extraída do Evangelho de João, serviu de inspiração a Bento XVI para falar da importância da Eucaristia, nosso alimento espiritual, a fiéis, peregrinos e visitantes reunidos no pátio interno da residência de Castel Gandolfo, onde o Papa se encontra neste período de verão europeu.
Comentando o Evangelho deste domingo, o Pontífice explicou que as ações realizadas por Jesus são paralelas às da Última Ceia: “Tomou os pães e, depois de dar graças, distribui-os aos presentes” (Jo 6,11). A insistência sobre o tema do “pão” que é distribuído e no agradecimento evocam a Eucaristia, o Sacrifício de Cristo para a salvação do mundo.
“A Eucaristia é o permanente grande encontro do homem com Deus, em que o Senhor se faz nosso alimento, dá Si mesmo para transformamo-nos Nele.”
Na cena da multiplicação, é sinalizada também a presença de um jovem, que, diante da dificuldade de saciar a fome de tanta gente, compartilha o pouco que tem.
“O milagre não se produz a partir do nada, mas de uma primeira modesta compartilha daquilo que um simples rapaz tinha consigo. Jesus não nos pede o que não temos, mas nos faz ver que, se cada um oferece o pouco que tem, o milagre pode novamente se realizar. Deus é capaz de multiplicar todo nosso pequeno gesto de amor e tornar-nos partícipes do seu dom”, explicou o Papa, acrescentando que Jesus não é um rei terreno que exercita o domínio, mas um rei que serve, que se curva sobre o homem para saciar não somente a fome material, mas sobretudo aquela mais profunda, a de Deus.
“Queridos irmãos e irmãs, peçamos ao Senhor que nos faça redescobrir a importância de nos nutrir do corpo de Cristo, participando fielmente e com grande consciência da Eucaristia, para estar sempre mais intimamente unidos a Ele. Ao mesmo tempo, rezemos para que jamais falte a ninguém o pão necessário para uma vida digna, e sejam abatidas as desigualdades não com as armas da violência, mas com a compartilha e o amor.”
(BF)

Tradição e Escritura

Entre os católicos tradicionalistas (e note bem o “istas”), é comum reclamar que o Concílio Ecumênico Vaticano II teria abandonado a tradição e até mesmo aderido aos “solas” protestantes, especialmente o sola Scriptura – somente a Escritura. Alguns usam como argumento a união Bíblia-tradição expressa na constituição dogmática Dei Verbum. Eles opõem ao ensinamento deuterovaticano a reafirmação da tradição pelo Concílio de Trento. É preciso novamente relembrar a historicidade dele, e, principalmente, o que realmente declarou.

A chamada “contra-reforma”

É comum na historiografia ouvir-se falar da “contra-reforma”, termo ao qual alguns historiadores católicos contrapõem outro, “reforma católica”. Trata-se do movimento da Igreja romana frente aos desafios impostos pelo avanço da reforma protestante no século XVI. O principal acontecimento nesse cenário foi o Concílio de Trento, o qual reafirmou as verdades de fé que os protestantes contestavam – dentre as quais necessariamente deveria constar a tradição como fonte da verdade.

Digo que deveria constar o argumento sobre a tradição, porque os protestantes, para poderem se desvincular da Igreja Católica, precisavam atacar sua autoridade enquanto detentora da tradição evangélica. Como não se poderia contestar a tradicionalidade do ensinamento romano, os novos grupos religiosos contestaram a própria tradição enquanto fonte da verdade, proclamando o “sola Scriptura”. A resposta tridentina (ou seja, do Concílio de Trento) a essa contestação veio já na quarta sessão do primeiro período conciliar, logo após a abertura (primeira sessão), as regras de vida a serem observadas no Concílio (segunda sessão) e a profissão de fé (terceira sessão).

Vejamos tal resposta:

O Sacrossanto, Ecumênico e Geral concílio de Trento, congregado legitimamente no Espírito Santo e presidido pelos três legados da Sé Apostólica, propondo-se sempre por objetivo que exterminados os erros se conserve na Igreja a mesma pureza do Evangelho, que prometido antes na Divina Escritura pelos Profetas, promulgou primeiramente por suas próprias palavras, Jesus Cristo, Filho de Deus e Nosso Senhor, e depois mandou que seus apóstolos a pregassem a toda criatura, como fonte de toda verdade que conduz à nossa salvação, e também é uma regra de costumes, considerando que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos e nas traduções não escritas, que recebidas na voz do mesmo Cristo pelos apóstolos ou ainda ensinadas pelos apóstolos, inspirados pelo Espírito Santo, chegaram de mão em mão até nós.

Seguindo o exemplo dos Padres católicos, recebe e venera com igual afeto de piedade e reverência, todos os livros do Velho e do Novo Testamento, pois Deus é o único autor de ambos assim como as mencionadas traduções pertencentes à fé e aos costumes, como as que foram ditadas verbalmente por Jesus Cristo ou pelo Espírito Santo, e conservadas perpetuamente sem interrupção pela Igreja Católica.

Resolveu também unir a este decreto o índice dos Livros Canônicos, para que ninguém possa duvidar quais são aqueles que são reconhecidos por este Sagrado Concílio. […]

Se alguém então não reconhecer como sagrados e canônicos estes livros inteiros, com todas as suas partes, como é de costume desde antigamente na Igreja católica, e se acham na antiga versão latina chamada Vulgata, e os depreciar de pleno conhecimento, e com deliberada vontade as mencionadas traduções, seja excomungado.[…]

Decreta também com a finalidade de conter os ingênuos insolentes, que ninguém, confiando em sua própria sabedoria, se atreva a interpretar a Sagrada Escritura em coisas pertencentes à fé e aos costumes que visam a propagação da doutrina Cristã, violando a Sagrada Escritura para apoiar suas opiniões, contra o sentido que lhe foi dado pela Santa Amada Igreja Católica, à qual é de exclusividade determinar o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Letras; nem tampouco contra o unânime consentimento dos santos Padres, ainda que em nenhum tempo se venham dar ao conhecimento estas interpretações.

Ou seja, o Concílio de Trento declarou a mesma fonte divina da Bíblia e da tradição católica, guardadas pela Igreja enquanto sucessora dos apóstolos. A tradição e a Escritura, portanto, são fontes ambas do magistério eclesiástico, visto que unidas indissoluvelmente e reveladas divinamente, o que resulta necessariamente que a única fonte do magistério é a divina, dada por dois meios, ditos também fontes: a Bíblia e a tradição.

O Concílio Ecumênico Vaticano II

Vejamos agora o que diz o Vaticano II em uma de suas constituições dogmáticas, a Dei Verbum, sobre a revelação divina (a outra é a Lumen Gentium, sobre a Igreja):

CAPÍTULO II

A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA

Os apóstolos e seus sucessores, transmissores do Evangelho

7. Deus dispôs amorosamente que permanecesse integro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma (cf. II Co 1,20; 3,164,6), mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação.

Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, «entregando lhes o seu próprio ofício de magistério». Portanto, esta sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus, de quem tudo recebe, até ser conduzida a vê-lo face a face tal qual Ele é (cf. I Jo 3,2).

A sagrada Tradição

8. […] Afirmações dos santos Padres testemunham a presença vivificadora desta Tradição, cujas riquezas entram na prática e na vida da Igreja crente e orante. Mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se incessantemente operante; e assim, Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho; e o Espírito Santo – por quem ressoa a voz do Evangelho na Igreja e, pela Igreja, no mundo – introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra de Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cf. Col 3,16).

Relação entre a sagrada Tradição e a Sagrada Escritura

9. A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência.

Relação de uma e outra com a Igreja e com o Magistério eclesiástico

10. A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina dos Apóstolos e na comunhão, na fracção do pão e na oração (cf. At 2,42), de tal modo que, na conservação, atuação e profissão da fé transmitida, haja uma especial concordância dos pastores e dos fiéis.

Porém, o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado.

É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas.

Nessa constituição dogmática do Concílio Vaticano II encontramos, portanto, plena continuidade do Decreto sobre as Escrituras Canônicas do Concílio de Trento. Não é verdadeiro o argumento que procura abalar a autoridade do Vaticano II sob pretexto de uma suposta ruptura com o concílio tridentino. O que o concílio mais recente fez foi, na verdade, atualizar a apresentação dessa doutrina, facilitando a atuação pastoral da Igreja Católica num mundo profundamente modificado – e a ação pastoral, que alguns questionam, nada mais é que fazer retornar para o caminho certo as ovelhas desviadas (Lc 15,3-7) e guiar em segurança todo o rebanho para seu destino, os prados celestiais, a exemplo e em nome de Nosso Bom Pastor Jesus Cristo (Jo 14).

“O marxismo, como era concebido…”

As (ainda) recentes declarações do papa geraram polêmica. A mídia empresarial distorceu-as, como se Bento XVI tivesse dito que o comunismo seria uma doutrina diabólica. Muitos, realmente muitos marxistas caíram no embuste e saíram a criticar o papa sem nem ir atrás da informação original, de que o papa os havia chamado ao diálogo. “Cuba precisa se abrir para o mundo, e o mundo precisa se abrir para Cuba”, disse João Paulo p.p. II. A fala do papa Bento XVI poderia muito bem ser resumida na paráfrase: “O marxismo precisa se abrir para o cristianismo, e o cristianismo precisa se abrir para marxismo”. Muitos responderam ao convite com pedras. Os inimigos sociais destes lhes forneceram as pedras. A Igreja foi mera espectadora.

A crise do socialismo

Não é possível negar que, com a queda do socialismo na Europa, as várias correntes marxistas entraram em crise. O revés foi grande, e o refluxo no número de seus quadros foi gigantesco. Partidos enormes fecharam as portas. Outros, minguaram. Alguns, como o PCdoB, decidiram renovar-se, não abandonaram o essencial do marxismo, mas buscaram compreender o ocorrido e daí tirar conclusões. A conclusão mais clara, desde o primeiro momento foi: não há uma via única para o socialismo. Outra foi se abrir para setores até então evitados, inclusive os amplos segmentos religiosos da sociedade brasileira. Há hoje até um campo específico no formulário de cadastramento do partido para identificar os que atuam em grupos religiosos. Porém, há em muitos militantes, e até mesmo quadros importantes do partido, um antigo ranço antirreligioso, como se o materialismo histórico e científico pudesse provar se existe ou não o que não é material…

Cuba

Se formos a Cuba, perceberemos que também lá o Partido Comunista se abre para novidades, e seu 6.º Congresso é exemplo atualíssimo disso. Também vemos que, desde que o Estado cubano deixou de ser oficialmente ateu, membros do Partido e pessoas proeminentes no Estado cubano praticam publicamente o catolicismo. O mesmo escritório registra que as antigas restrições cubanas à entrada de clérigos estrangeiros e novas ordens religiosas têm sido levantadas. O núncio apostólico registra que há “um novo clima” nas relações entre a Igreja e o governo de Cuba. Em outro documento, os vizinhos do norte criticam a Igreja Católica por não seguir suas posições quanto às terras desapropriadas pela Revolução Cubana (§ 3) (desculpa dos EUA para o bloqueio) e por só contestar o governo cubano quando as políticas deste diferem da doutrina católica (§ 10). Esse mesmo documento reconhece que o número de presbíteros e religiosos em Cuba duplicou em dez anos, e também o governo cubano permite que a Igreja receba fundos estrangeiros para suprir suas necessidades materiais e fazer obras de caridade (§ 2). Para os EUA, a Igreja Católica deveria como que “bloquear” Cuba. A Igreja Católica, porém, pensa o contrário.

Ainda sobre Cuba, e ainda com base nas informações americanas, temos como exemplo o apoio direto de Fidel Castro à inauguração de um convento da Ordem do Santíssimo Salvador de Santa Brígida em Havana. Segundo o documento da embaixada dos EUA no Vaticano a respeito dessa efeméride, a abadessa-geral da ordem, Madre Tekla Famiglietti teria recebido ameaças por parte dos que residem em Miami, os mais ferrenhos opositores do regime cubano. Do governo e, pessoalmente do governante, Fidel Castro, toda ajuda. O documento demonstra bem que aquele país não vê com bons olhos a cooperação entre a Igreja e o governo cubano. Por outro lado, a homilia do Cardeal Sepe durante a inauguração do convento, diz estar “persuadido de que os maravilhosos dias que viram a presença do Vigário de Cristo em Cuba [João Paulo p.p. II], as suas palavras de esperança, de concórdia e de reconciliação continuam a ressoar vigorosamente na mente e no coração de todos vós [cubanos].”

Outrossim, é notável a frase usada em 2002 pelo diretor para assuntos do Caribe da secretaria de Estado do Vaticano, Monsenhor Lingua, ao explicitar para a embaixada americana que a Igreja em Cuba nunca foi perseguida como em países do leste europeu: o “socialismo à antiga” é que teria ameaçado a Igreja Católica na Europa, o que não ocorreu no país caribenho. “A ideologia marxista, como era concebida”, poderíamos dizer…

A epistemologia marxista e os limites do materialismo científico

Já mencionei acima a impossibilidade de o materialismo científico provar a existência ou inexistência do que não é material. Trata-se de uma questão epistemológica básica: o que o método científico materialista estuda? As condições materiais e a ação do homem sobre a natureza material. Especificamente o método marxista, que é materialista e dialético, estuda as influências recíprocas entre natureza e homem do ponto de vista material – homem este que é sujeito sobre a natureza, mas também objeto da natureza. Como tal, está limitado ao conhecimento do que é capaz de medir e teorizar. Tudo o que não é mensurável, é descartado pelo método materialista. Mas, como objeto natural, o homem também está limitado até mesmo no conhecer o mundo material, pois só o conhece através de seus sentidos e dos aparelhos que sua mente concebe e sua habilidade permite. E isso impõe uma dupla limitação, sensível e intelectual. Do ponto de vista religioso, poderíamos dizer que a criatura nunca conhece completamente a criação, apenas o Criador a concebe totalmente, assim como poderíamos dizer que o homem é constituído necessariamente de corpo material e alma espiritual.

Ateísmo militante

Daí devemos chegar à conclusão justa de que o ateísmo não pode ser uma parte integrante do marxismo, embora isso certamente não exclua aos ateus a possibilidade de serem marxistas. O que não pode ocorrer é um agrupamento se dizer marxista e, como tal, militar a favor do ateísmo. Especialmente, não se pode excluir a religiosidade com a descula do marxismo – que não oferece tal desculpa.

É verdade que Marx, Engels, Lênin e muitos outros foram ateus militantes. Viveram tempos conturbados nesse aspecto, especialmente Marx, pois, sendo de origem judia, com família convertida ao protestantismo possivelmente por motivos econômicos, teve toda uma perspectiva de vida barrada pela insensatez falsamente religiosa de alguns.

Entretanto, vemos já em José Carlos Mariátegui, um dos pioneiros do marxismo na América Latina, a defesa sensata do materialismo na ciência, e não do materialismo existencial:

O socialismo, conforme as conclusões do materialismo histórico – que convém não confundir com o materialismo filosófico –, considera as formas eclesiásticas e doutrinas religiosas peculiares e inerentes ao regime econômico-social que as sustém e produz. E se preocupa, portanto, em mudar este, e não aquelas. A mera agitação anticlerical é vista pelo socialismo como um diversionismo liberal burguês.

(MARIÁTEGUI, José Carlos. El factor religioso. In: 7 Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana.)

Se formos nos deter sobre o método histórico aplicado sobre a exegese bíblica modernamente, veremos uma tese muito semelhante no que diz respeito ao papel do “regime econômico-social” no culto e na escrita sagrados.

A justa e eqüitativa distribuição das riquezas materiais

Por fim, é muito proveitoso citar o Cardeal Sepe e assim explicitar o papel do socialismo renovado e o papel da Igreja Católica, valorando positivamente os progressos trazidos pelo socialismo e mantendo a enorme importância do “amor divino, eterno e transcendente, que Jesus Cristo nos revela por intermédio da sua humanidade”:

Sabemos que os progressos sociais e culturais positivos, alcançados por um povo, assim como os louváveis esforços em ordem a uma justa e equitativa distribuição das riquezas materiais, não podem saciar as aspirações mais profundas que residem no coração de cada homem e de cada mulher; é o amor divino, eterno e transcendente, que Jesus Cristo nos revela por intermédio da sua humanidade, o único que é capaz de saciar completamente estes anseios. A Igreja deseja ser, também em Cuba, anunciadora fiel e verdadeira deste Amor.

(Cardeal Sepe. Homilia na Catedral de Havana por ocasião da inauguração da casa da Ordem do Santíssimo Salvador de Santa Brígida. Havana, 2003.)

Nota: esta postagem foi originalmente publicada no meu antigo blog Marxismo Online no dia 4 de julho de 2012.

Amor, comunhão, catolicidade

Desta vez tentarei ser breve e menos formal. Falo sobre os recentes acontecimentos envolvendo a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX), para além da questão litúrgica, já tratada em A sacramentalização do rito.

Meu questionamento é simples: eles tanto falam em promover a “tradição católica”, mas o que fazem? Em 1988, o papa João Paulo II escreveu o importante documento Ecclesia Dei, especificamente acerca de certas atitudes do fundador da FSSPX, Monsenhor Marcel Lefebvre, mais especificamente a ordenação de quatro bispos em “desobediência ao Romano Pontífice em matéria gravíssima e de importância capital para a unidade da Igreja […] Por isso, tal desobediência – que traz consigo uma rejeição prática do Primado romano – constitui um ato cismático“, acrescentando que todos eles (Lefebvre e os quatro bispos por ele ordenados) incorreram na pena canônica de excomunhão (n.º 3).

Prosseguiu o Santo Padre:

4. A raiz deste acto cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não tem em suficiente consideração o carácter vivo da Tradição, “que – como é claramente ensinado pelo Concílio Vaticano II – sendo transmitida pelos Apóstolos … progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração, quer mercê da íntima inteligencia que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade”.

Mas é sobretudo contraditória uma noção de Tradição que se opõe ao Magistério universal da Igreja, do qual é detentor o Bispo de Roma e o Colégio dos Bispos. Não se pode permanecer fiel à Tradição rompendo o vínculo eclesial com aquele a quem o próprio Cristo, na pessoa do Apostolo Pedro, confiou o ministério da unidade na sua Igreja.

E contra isso se insurgem novamente os Lefebvrianos, apesar dos reiterados convites à unidade. Mais recentemente, eles impuseram “condições” para retornar à plena comunhão com a Igreja Católica, dentre elas liberdade para “acusar e até corrigir os promotores dos erros do modernismo, liberalismo, [Concílio] Vaticano II e conseqüências”. Entre as “conseqüências” convém salientar uma suposta diminuição da autoridade do papa em vista da promoção da colegialidade dos bispos. O que é isso, senão ir contra a tradição viva da igreja? O que é falar de tradição rompendo com a tradição viva da Igreja? O que é falar de “diminuição da autoridade do papa” impondo condições ao papa?

Compreendendo o Ecclesia Dei, alguns católicos mais apegados às antigas formas do rito romano fundaram a Fraternidade Sacerdotal São Pedro (FSSP), que preserva as formas anteriores ao Concílio Vaticano II, mas conserva também a unidade com a Igreja Católica, a qual se insere e tem de agir num mundo que não congelou em 1962, ano da última edição do missal antigo.

As divergências entre a FSSPX e o Vaticano não se resolverão com a imposição de um determinado modo de ser Igreja, de participar da diversidade de dons do mesmo Espírito (I Co 12,4). Sábias são as palavras do beato João Paulo II:

5. […] Todavia, é preciso que todos os Pastores e os demais fiéis tomem nova consciência, não só da legitimidade mas também da riqueza que representa para a Igreja a diversidade de carismas e de tradições de espiritualidade e de apostolado, o que constitui a beleza da unidade na variedade: daquela “sintonia” que, sob o impulso do Espírito Santo, a Igreja terrestre eleva ao céu.

São palavras que devemos ter sempre em mente, quer tratemos da FSSPX, quer de qualquer grupo dentro da Igreja, sejam tradicionalistas, carismáticos, adeptos da teologia da libertação, ou o que mais houver. Deus é amor (I Jo 4,16), não é?

Amar os homossexuais

Eu não deveria me surpreender, nos tempos atuais, com o que li hoje. Um site “católico” teria divulgado uma lista de políticos que mereceriam o “cartão vermelho” do eleitor católico por comporem “frente organizada pelo agressivo lobby gay no Congresso Nacional que propõe, entre outras coisas, que crianças sejam doutrinadas na ideologia gayzista, que o Estado financie paradas gays e políticas de interesse do lobby, e que cidadãos sejam perseguidos e presos por se oporem a isso”. Nada mais anticristão do que dizer tais bobagens. Quem é Nosso Senhor Jesus Cristo? Como Ele agiu em sua vida terrena?

Até onde sei, Nosso Senhor não disse “Abominarás os gays, este é o maior e primeiro mandamento; o segundo, semelhante a este é: abominarás a ideologia gayzista como abominas os gays.” Não se trata apenas de um neologismo horrendo, mas de uma completa subversão das palavras de Cristo (Mt 22,37-40):

Respondeu Jesus: Amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito (Dt 6,5). Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo (Lv 19,18). Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas.

Quem é o próximo, a quem devemos amar? Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), Jesus Cristo ensina que até mesmo um samaritano pode ser o próximo para um judeu – e quem mais pecador, para um judeu, do que um samaritano?

Empréstimo pseudo-evangélico

A questão “anti-gayzista” parece na verdade um empréstimo pseudo-evangélico, isto é daqueles falsos profetas que andam o tempo todo com uma bíblia debaixo do braço dizendo “Senhor, Senhor!”, mas que não fazem a vontade do Pai – esses não entrarão no Reino dos céus (Mt 7,21). Não preciso citar quem são, pois eles mesmos dão seu testemunho.

O Catecismo da Igreja Católica (CIC), ao contrário, dá exemplo da sã doutrina, plenamente de acordo com o ensinamento do verdadeiro Evangelho revelado por Deus aos seus discípulos. Após dizer que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados, ainda que sua gênese psíquica permaneça por se explicar (§ 2.357), assim afirma:

2358. Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objectivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição.

2359. As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio, educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada, pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã.

Isso mesmo! Os homossexuais são chamados a uma vida de santidade, tanto quanto os heterossexuais! E, mais ainda, devemos ajudá-los com uma “amizade desinteressada”! Nesse momento, São João da Cruz nos convidaria a todos para a “noite dos sentidos” e a “noite da fé”, a fim de nos fecharmos para o que nós mesmos criamos e nos abrirmos para o que vem de Deus (v. Subida do Monte Carmelo).

Quem ou o que merece o “cartão vermelho”?

Quem, na política, verdadeiramente merece o “cartão vermelho” dos católicos? Todo aquele que vai contra o amor cristão. Isso significa ir contra o respeito aos trabalhadores, às crianças, aos idosos e a todos os que se encontram em uma situação frágil em nossa sociedade, inclusive os homossexuais.

Numa sociedade em que tantos atos de homofobia ocorrem diariamente, muitas vezes ganhando as manchetes devido à violência e à arbitrariedade com que são escolhidas suas vítimas (às vezes pai e filho, ou então irmãos, porque se abraçam), não é possível a um verdadeiro cristão assistir de braços cruzados. É preciso agir e garantir os direitos humanos, inclusive alterando a legislação para que tamanha barbárie não passe impune. É o que procura fazer o PLC 122/2006, que apenas amplia a legislação penal que já combate o preconceito e a discriminação, passando a abranger também o preconceito e a discriminação contra homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e até heterossexuais, de acordo com o último relatório, de autoria da senadora Marta Suplicy.

A violência, o preconceito e a discriminação é que merecem nosso “cartão vermelho”.

A sacramentalização do rito

É consabido que o Concílio Ecumênico Vaticano II introduziu reformas na liturgia católica e também no modo de agir com as igrejas separadas. Alguns setores tradicionalistas, em que pese, digamos, o grande risco de cisma, não aceitaram as decisões conciliares e resolveram promover uma guerra contra toda e qualquer renovação na Igreja, sob o pretexto de defendê-la da “heresia modernista” e da “apostasia silenciosa”. Incorrem em diversas contradições, contudo.

É verdade que os riscos modernistas e silenciosamente apóstatas foram salientados por papas passados, e muito convenientemente. Contudo, quando grupos como a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) dizem defender a Igreja da própria Igreja, estão eles combatendo uma apostasia, ou criando eles mesmos uma apostasia? Estão combatendo um modernismo pernicioso, ou cultivando um tradicionalismo pernicioso?

A FSSPX e a liturgia

Em que pese a FSSPX e os tradicionalistas em geral falarem também de outros assuntos, a questão principal é sempre a liturgia. Veja-se a apresentação da “tradução informal para o português” de Acuso o Concílio, publicada pela FSSPX no Brasil:

Dom Lefebvre atraiu a atenção do mundo por sua oposição às mudanças que se faziam na Igreja em nome do Concílio Vaticano II. Textos ambíguos, aprovados pela possibilidade de uma interpretação ortodoxa, eram invocados depois para justificar uma interpretação heterodoxa. As reformas na liturgia tinham implicâncias teológicas capazes de adulterar a fé. Logo, não eram lícitas.

Ressalte-se que Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a reforma da liturgia, foi aprovada com 2.147 votos favoráveis e apenas 4 contrários. Ou seja, foi certamente a expressão da vontade dos pastores da Igreja Católica, não por uma estreita maioria, mas por um consenso do qual discordaram quase que apenas os que se separaram da Sé romana.

Os que seguem tal fraternidade afirmam, em primeiro lugar, que se trataria de uma fórmula com 2.000 anos de existência. É mentira. O rito aprovado por pelo papa São Pio V foi, justamente, aprovado por este papa, em conformidade com a doutrina sobre o Sacrifício [Eucarístico] da Missa, do Concílio de Trento, de 17 de setembro de 1562. A promulgação do rito data de 8 anos depois, 1570. Portanto, é um rito mais ou menos fixado há 442 anos e que não impediu a celebração de diversos outros ritos, como, por exemplo, o ucraíno e o ambrosiano. Trata-se de uma fixação do rito romano e de sua extensão por toda a parte onde não se usasse tradicionalmente um rito diferente.

Historicidade do rito romano tradicional

Qual a finalidade de se fixar uma determinada fórmula para celebração da Missa, e ainda obrigar que seja dita em latim, em vez da língua local? Simplesmente porque, no século XVI, o uso do vernáculo se misturava aos ímpetos cismáticos dos que viam, na autoridade do papa, uma espécie de ditadura romana. Isso levou a cismas, heresias e até mesmo guerras, como a guerra camponesa na Alemanha nos anos 1520 (não por acaso, logo no início da reforma luterana). A língua litúrgica e a autoridade dos príncipes se misturaram e resultaram em que, a meados daquele século, os príncipes do Sacro Império Romano-Germânico pudessem impor a profissão de fé de Augsburgo (luterana) ou a romana. Mesmo em tais condições, o Concílio de Trento estabeleceu:

Ainda que a Missa inclua muita instrução para o povo fiel, sem dúvida não pareceu conveniente aos Padres que ela seja celebrada em todas as partes em língua vulgar. Por este motivo, ordena o Santo Concílio aos Pastores e a todos que tenham cura de almas, que conservando em todas as partes o ritual antigo de cada igreja, aprovado por esta Santa Igreja romana, Mãe e Mestra de todas as igrejas, com a finalidade de que as ovelhas de Cristo não padeçam de fome, ou as crianças peçam pão e não haja quem o reparta, exponham freqüentemente por si ou por outros, algum ponto dos que se leêm na Missa, no tempo que esta se celebra entre os demais, declarem especialmente nos domingos e dias de festa, algum mistério deste santíssimo sacrifício.

Ou seja, decidiu que ela não seja “celebrada em todas as partes em língua vulgar”, mas que se exponha freqüentemente (em língua vulgar) “algum ponto dos que se lêem na Missa”. Mais adiante, no mesmo documento sobre a doutrina da Missa, condenam-se apenas os que defendem “que a Missa deve ser dita sempre em língua vulgar” (cânon IX).

Ademais, o rito sofreu alterações posteriores, incluindo a oração a São Miguel Arcanjo que, por determinação do Papa Leão XIII passou a ser rezada ao final da Missa a partir de 1886 (há 126 anos).

Missa e signos

O ritual da Missa é essencialmente a significação do sacrifício de Cristo. Ou seja, o sacrifício eucarístico, instituído diretamente por Deus, é atualizado através de sinais visíveis. Esses sinais, por sua vez, derivam diretamente das palavras proferidas por Jesus na última ceia, em que instituiu sua memória, a atualização do sacrifício, e o sacerdócio dos apóstolos. Tais palavras foram provavelmente ditas em aramaico, língua corrente na Palestina daquela época. Foram escritas no evangelho em grego. Daí, foram vertidas para o latim. Não perderam, contudo, seu significado, quer dizer, transmitem ainda hoje o sinal da morte e da ressurreição do Deus Vivo. Instituem verdadeiramente a Eucaristia, o sacrifício divino em favor dos pecadores, não pelo poder das palavras, mas pelo poder sacerdotal que Deus confere aos presbíteros e pastores da Igreja universal. Para que os sinais do verdadeiro e real sacrifício presente na missa sejam recebidos pelos fiéis, é necessário que estes compreendam o que é feito, como diz a constituição conciliar mais recente:

11. Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com rectidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na acção litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, activa e frutuosamente.

Portanto, para que não haja um involuntário sacrilégio, é necessário que o fiel participe do sacrifício no sentido de compreendê-lo e apreendê-lo. Para que o uso da língua vernácula, “de grande utilidade para os fiéis”, não excedesse sua função, a mesma constituição determina que o texto traduzido deva ser aprovado pelo Vaticano (n.º 36).

O Concílio Vaticano II e os ritos já estabelecidos

Ademais, o mais recente concílio não teve propósito de alterar a fé, e sim de reafirmá-la e atualizar sua expressão. No tocante aos ritos, assim prescreve:

4. O sagrado Concílio, guarda fiel da tradição, declara que a santa mãe Igreja considera iguais em direito e honra todos os ritos legitimamente reconhecidos, quer que se mantenham e sejam por todos os meios promovidos, e deseja que, onde for necessário, sejam prudente e integralmente revistos no espírito da sã tradição e lhes seja dado novo vigor, de acordo com as circunstâncias e as necessidades do nosso tempo.

Deixemos ao próprio concílio falar a respeito de seus objetivos pastorais na reforma da liturgia:

1. O sagrado Concílio propõe-se fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja. Julga, por isso, dever também interessar-se de modo particular pela reforma e incremento da Liturgia.

Separar-se da fé católica dizendo defender a tradição contra o “modernismo” do Concílio Ecumênico Vaticano II é, portanto, tentar transformar a forma litúrgica (o rito) em um falso sacramento, como se tivéssemos na tradição uma forma ritual instituída diretamente por Deus, e não sinais visíveis do real sacramento eucarístico. E querer retirar dos sinais visíveis a possibilidade de ter receptores entre os fiéis leigos é querer retirar destes a possibilidade de acederem à realidade do sacrifício do Deus Vivo presente na Missa.

Querem continuar a celebrar conforme o missal antigo? Não há problema, ele continua sendo válido, pois obedece plenamente ao que é imutável. É uma das “duas formas da única lex orandi da Igreja de rito latino.” Porém, não podemos sacralizar o que está sujeito à mudança. A língua latina evoluiu. As palavras de Cristo foram vertidas para essa língua. A Missa evoluiu, mesmo no rito de S. Pio V. Os sinais continuaram lá. Agora temos uma outra forma, preferível porque atinge mais pessoas e é capaz de reunir mais fiéis em torno do sagrado sacrifício. Não há uma oposição que se possa fomentar, pois também nessa nova forma os sinais continuam. Quem quer que a Missa perca seu sabor para o povo? “O sal é uma coisa boa, mas se ele perder o seu sabor, com que o recuperará? Não servirá nem para a terra nem para adubo, mas lançar-se-á fora. O que tem ouvidos para ouvir, ouça!” (Lc 14,34-35)