Estatuto da Família aprovado na Câmara

A Câmara dos Deputados aprovou ontem (24), em votação em comissão especial, o projeto de lei que institui o Estatuto da Família, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), com o objetivo de assegurar políticas públicas voltadas para a família, a criação de conselhos de políticas públicas para a família, a prioridade a ser dada em casos que envolvam a manutenção do núcleo familiar e a sua participação nas decisões escolares, por exemplo. O projeto define família como “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Em 1.º de julho deste ano, o Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH) aprovou resolução nesse mesmo sentido. Votaram a favor da proteção dela os países árabes e muçulmanos, os países africanos (exceto África do Sul), a Rússia, os países socialistas, a Venezuela, a Bolívia, o Paraguai, e os países asiáticos (exceto Coréia do Sul e Japão). O Brasil se absteve. Os países europeus e os EUA foram contra a resolução. Ontem, na Câmara dos Deputados, PT, PCdoB, PTN e PSol se revezaram na tentativa de adiar a votação, por serem contra o projeto. Para eles, definir família como união de um homem e uma mulher seria uma “discriminação” contra outras “formas de família” — a mesma postura foi adotada por países europeus na CDH. Em ambos os casos, aprovaram-se projetos que simplesmente defendem a família natural, sem prejudicar quem não faça parte dela.

Se não for apresentado recurso, o Estatuto da Família seguirá diretamente para apreciação do Senado Federal. Se aprovado, poderá virar lei caso seja sancionado pela presidente da República. Se for apresentado recurso, ele deverá ser votado ainda no plenário da Câmara dos Deputados.

Opinião de Visão Católica

A mixórdia de grupos contra e a favor do Estatuto da Família e da resolução da ONU demonstram como a questão é complicada e deve ser tratada com sabedoria. A postura de definir família como união de um homem e uma mulher é, evidentemente, correta e natural. Contudo, apresentam-se contrariamente aqueles que adotam o moderno relativismo, um componente capital no liberalismo que grassa a Europa e fincou raízes na América. Curiosamente, no Brasil são grupos socialistas e de esquerda que levantam a bandeira liberal, enquanto na Europa, e na América do Norte são os países de capitalismo mais desenvolvido que o fazem.

A questão vai muito além do simplismo de alguns grupos (inclusive alguns que se dizem cristãos) a respeito de um suposto “marxismo cultural” querendo destruir a família. O papel do liberalismo (que é uma das raízes do socialismo), nesse caso, fica cabalmente demonstrado: promotor de tudo o que for antinatural e anti-eclesial, pois a Lei Natural e a Igreja são o alvo principal de doutrinas que dizem que tudo deve ser permitido (liberalismo) ou que tudo deriva da ação humana (uma visão do materialismo histórico). Curiosamente, Cuba, China e Vietnã, que são países socialistas, votaram a favor da família na ONU — afinal de contas, é de reconhecer que o materialismo comporta algum espaço para a ordem natural (material), e, nesses países, os partidos comunistas não dependem de grupos minoritários para sobreviver.

(Foto em destaque: sessão da comissão especial que aprovou o Estatuto da Família, em 24/09/2015. Gilmar Felix/Câmara dos Deputados.)

EUA e Cuba reabrem embaixadas

Após décadas de hostilidades, que incluíram invasões militares, transmissões clandestinas de rádio e televisão, atos de terrorismo – promovidos pelos EUA – e disputa ideológica de ambas as partes, Estados Unidos da América e Cuba reabriram hoje (20) suas embaixadas. Ainda não é a normalização completa das relações, que o presidente cubano condiciona a novas atitudes por parte do homólogo norte-americano, mas é mais um passo significativo na direção da integração e da abertura, iniciados ano passado.

Seção de interesses norte-americanos em Cuba, agora oficialmente uma embaixada. Foto: Escla/Wikimedia.
Seção de interesses norte-americanos em Cuba, agora oficialmente uma embaixada. Foto: Escla/Wikimedia.

Segundo a Agência Lusa, entre as exigências cubanas estão o fim do bloqueio comercial imposto pelos EUA, a devolução da base naval norte-americana em Guantânamo (Cuba), o fim das transmissões clandestinas de rádio e televisão a partir de equipamentos militares norte-americanos, o fim de programas que dão apoio a opositores do regime cubano, e a compensação pelos danos humanos e econômicos causados pelas políticas norte-americanas.

A reaproximação entre os países teve um dedo da Igreja Católica, mas o papa Francisco disse no retorno de sua viagem pastoral à América do Sul que “o mérito é deles, que fizeram isto. Nós não fizemos quase nada.” Houve, no entanto, meses de oração e uma missão cardinalícia com esse propósito. Em setembro o papa viajará a Cuba e aos Estados Unidos da América, incluindo um pronunciamento na Assembléia Geral das Nações Unidas.

Estados Unidos, Cuba e a verdadeira religião

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Ontem vimos a história acontecer diante de nossos olhos. Estados Unidos da América e Cuba, unidos pelos laços da diplomacia, com a mediação do papa Francisco.

Eis meu Servo que eu amparo, meu eleito ao qual dou toda a minha afeição, faço repousar sobre ele meu espírito, para que leve às nações a verdadeira religião.
Ele não grita, nunca eleva a voz, não clama nas ruas.
Não quebrará o caniço rachado, não extinguirá a mecha que ainda fumega. Anunciará com toda a franqueza a verdadeira religião; não desanimará, nem desfalecerá,
até que tenha estabelecido a verdadeira religião sobre a terra, e até que as ilhas desejem seus ensinamentos.
Eis o que diz o Senhor Deus que criou os céus e os desdobrou, que firmou a terra e toda a sua vegetação, que dá respiração a seus habitantes, e o sopro vital àqueles que pisam o solo:
Eu, o Senhor, chamei-te realmente, eu te segurei pela mão, eu te formei e designei para ser a aliança com os povos, a luz das nações;
para abrir os olhos aos cegos, para tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão aqueles que vivem nas trevas. (Is 42,1-7)

Esses são versos do profeta Isaías, aplicados ao Cristo de Deus. Ontem, o papa, vigário de Cristo, os cumpriu.

E o que relações diplomáticas têm a ver com religião? Tudo. “Religião” é palavra de origem latina e tem dois significados. O mais conhecido vem de religare, isto é, religar. A princípio, religar o homem e Deus. Ontem, o que aconteceu foi religar o homem com o homem. Mas, isso não teria sido possível sem o outro significado, que vem de relegere: reler. Esse grande acontecimento, que transformou armas em arados (v. Is 2,4), só foi possível graças à releitura das relações EUA-Cuba. Das antigas bases econômico-políticas, que apenas tinha olhos para o planisfério e as antigas propriedades americanas na ilha, passou-se a bases humanitárias, graças à intervenção do papa Francisco. Os olhos dos mandatários passaram a homens e mulheres que sofrem, especialmente quatro prisioneiros agora libertados. Cuba se abriu para o mundo, e o mundo se abriu para Cuba.

Religião e história brasileira

Isso nos deveria levar a reler também a história brasileira, reler acontecimentos da mesma época que a revolução cubana (1959). Isso teria impactos significativos na nossa política atual, e traria a paz política a nosso país. Os EUA optaram por isolar Cuba, mas não deu certo — apenas levou à radicalização da política cubana. Certos grupos econômicos e políticos optaram por isolar o Partido Trabalhista Brasileiro e os presidentes petebistas Getúlio Vargas (1951-1954) e João Goulart (1961-1964). Alguns cristãos também se envolveram nesse isolamento. O resultado foram 21 anos de ditadura, assassinatos políticos, torturas, exílio, guerra interna. Muitos cristãos foram perseguidos, leigos, religiosos e sacerdotes. Nem mesmo o recém-divulgado relatório da Comissão da Verdade foi capaz de realizar a releitura.

Chegou a hora de abrir os corações, retirar o coração enrijecido pelo ódio e pelo pecado e deixar Deus colocar em nós um coração de carne (Ez 11,19; 36,26), capaz de sentir com o outro, compadecer-se do sofrimento do nosso próximo. Deus veio sentir conosco todo o sofrimento humano e carregá-lo sobre a cruz. Todos sofreram as conseqüências da política de isolamento, e ainda hoje nos isolamos uns dos outros: dividimo-nos entre os que apoiam e os que repudiam a ditadura. Chegou a hora de reconhecermo-nos como irmãos. Chegou a hora de dizermos para o outro: você teve suas razões, você teve seu padecimento. Vamos agora caminhar juntos e realizar a verdadeira religião, pois, “Se alguém pensa ser piedoso, mas não refreia a sua língua e engana o seu coração, então é vã a sua religião. A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e conservar-se puro da corrupção deste mundo.” (Tg 1,26s)

“O marxismo, como era concebido…”

As (ainda) recentes declarações do papa geraram polêmica. A mídia empresarial distorceu-as, como se Bento XVI tivesse dito que o comunismo seria uma doutrina diabólica. Muitos, realmente muitos marxistas caíram no embuste e saíram a criticar o papa sem nem ir atrás da informação original, de que o papa os havia chamado ao diálogo. “Cuba precisa se abrir para o mundo, e o mundo precisa se abrir para Cuba”, disse João Paulo p.p. II. A fala do papa Bento XVI poderia muito bem ser resumida na paráfrase: “O marxismo precisa se abrir para o cristianismo, e o cristianismo precisa se abrir para marxismo”. Muitos responderam ao convite com pedras. Os inimigos sociais destes lhes forneceram as pedras. A Igreja foi mera espectadora.

A crise do socialismo

Não é possível negar que, com a queda do socialismo na Europa, as várias correntes marxistas entraram em crise. O revés foi grande, e o refluxo no número de seus quadros foi gigantesco. Partidos enormes fecharam as portas. Outros, minguaram. Alguns, como o PCdoB, decidiram renovar-se, não abandonaram o essencial do marxismo, mas buscaram compreender o ocorrido e daí tirar conclusões. A conclusão mais clara, desde o primeiro momento foi: não há uma via única para o socialismo. Outra foi se abrir para setores até então evitados, inclusive os amplos segmentos religiosos da sociedade brasileira. Há hoje até um campo específico no formulário de cadastramento do partido para identificar os que atuam em grupos religiosos. Porém, há em muitos militantes, e até mesmo quadros importantes do partido, um antigo ranço antirreligioso, como se o materialismo histórico e científico pudesse provar se existe ou não o que não é material…

Cuba

Se formos a Cuba, perceberemos que também lá o Partido Comunista se abre para novidades, e seu 6.º Congresso é exemplo atualíssimo disso. Também vemos que, desde que o Estado cubano deixou de ser oficialmente ateu, membros do Partido e pessoas proeminentes no Estado cubano praticam publicamente o catolicismo. O mesmo escritório registra que as antigas restrições cubanas à entrada de clérigos estrangeiros e novas ordens religiosas têm sido levantadas. O núncio apostólico registra que há “um novo clima” nas relações entre a Igreja e o governo de Cuba. Em outro documento, os vizinhos do norte criticam a Igreja Católica por não seguir suas posições quanto às terras desapropriadas pela Revolução Cubana (§ 3) (desculpa dos EUA para o bloqueio) e por só contestar o governo cubano quando as políticas deste diferem da doutrina católica (§ 10). Esse mesmo documento reconhece que o número de presbíteros e religiosos em Cuba duplicou em dez anos, e também o governo cubano permite que a Igreja receba fundos estrangeiros para suprir suas necessidades materiais e fazer obras de caridade (§ 2). Para os EUA, a Igreja Católica deveria como que “bloquear” Cuba. A Igreja Católica, porém, pensa o contrário.

Ainda sobre Cuba, e ainda com base nas informações americanas, temos como exemplo o apoio direto de Fidel Castro à inauguração de um convento da Ordem do Santíssimo Salvador de Santa Brígida em Havana. Segundo o documento da embaixada dos EUA no Vaticano a respeito dessa efeméride, a abadessa-geral da ordem, Madre Tekla Famiglietti teria recebido ameaças por parte dos que residem em Miami, os mais ferrenhos opositores do regime cubano. Do governo e, pessoalmente do governante, Fidel Castro, toda ajuda. O documento demonstra bem que aquele país não vê com bons olhos a cooperação entre a Igreja e o governo cubano. Por outro lado, a homilia do Cardeal Sepe durante a inauguração do convento, diz estar “persuadido de que os maravilhosos dias que viram a presença do Vigário de Cristo em Cuba [João Paulo p.p. II], as suas palavras de esperança, de concórdia e de reconciliação continuam a ressoar vigorosamente na mente e no coração de todos vós [cubanos].”

Outrossim, é notável a frase usada em 2002 pelo diretor para assuntos do Caribe da secretaria de Estado do Vaticano, Monsenhor Lingua, ao explicitar para a embaixada americana que a Igreja em Cuba nunca foi perseguida como em países do leste europeu: o “socialismo à antiga” é que teria ameaçado a Igreja Católica na Europa, o que não ocorreu no país caribenho. “A ideologia marxista, como era concebida”, poderíamos dizer…

A epistemologia marxista e os limites do materialismo científico

Já mencionei acima a impossibilidade de o materialismo científico provar a existência ou inexistência do que não é material. Trata-se de uma questão epistemológica básica: o que o método científico materialista estuda? As condições materiais e a ação do homem sobre a natureza material. Especificamente o método marxista, que é materialista e dialético, estuda as influências recíprocas entre natureza e homem do ponto de vista material – homem este que é sujeito sobre a natureza, mas também objeto da natureza. Como tal, está limitado ao conhecimento do que é capaz de medir e teorizar. Tudo o que não é mensurável, é descartado pelo método materialista. Mas, como objeto natural, o homem também está limitado até mesmo no conhecer o mundo material, pois só o conhece através de seus sentidos e dos aparelhos que sua mente concebe e sua habilidade permite. E isso impõe uma dupla limitação, sensível e intelectual. Do ponto de vista religioso, poderíamos dizer que a criatura nunca conhece completamente a criação, apenas o Criador a concebe totalmente, assim como poderíamos dizer que o homem é constituído necessariamente de corpo material e alma espiritual.

Ateísmo militante

Daí devemos chegar à conclusão justa de que o ateísmo não pode ser uma parte integrante do marxismo, embora isso certamente não exclua aos ateus a possibilidade de serem marxistas. O que não pode ocorrer é um agrupamento se dizer marxista e, como tal, militar a favor do ateísmo. Especialmente, não se pode excluir a religiosidade com a descula do marxismo – que não oferece tal desculpa.

É verdade que Marx, Engels, Lênin e muitos outros foram ateus militantes. Viveram tempos conturbados nesse aspecto, especialmente Marx, pois, sendo de origem judia, com família convertida ao protestantismo possivelmente por motivos econômicos, teve toda uma perspectiva de vida barrada pela insensatez falsamente religiosa de alguns.

Entretanto, vemos já em José Carlos Mariátegui, um dos pioneiros do marxismo na América Latina, a defesa sensata do materialismo na ciência, e não do materialismo existencial:

O socialismo, conforme as conclusões do materialismo histórico – que convém não confundir com o materialismo filosófico –, considera as formas eclesiásticas e doutrinas religiosas peculiares e inerentes ao regime econômico-social que as sustém e produz. E se preocupa, portanto, em mudar este, e não aquelas. A mera agitação anticlerical é vista pelo socialismo como um diversionismo liberal burguês.

(MARIÁTEGUI, José Carlos. El factor religioso. In: 7 Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana.)

Se formos nos deter sobre o método histórico aplicado sobre a exegese bíblica modernamente, veremos uma tese muito semelhante no que diz respeito ao papel do “regime econômico-social” no culto e na escrita sagrados.

A justa e eqüitativa distribuição das riquezas materiais

Por fim, é muito proveitoso citar o Cardeal Sepe e assim explicitar o papel do socialismo renovado e o papel da Igreja Católica, valorando positivamente os progressos trazidos pelo socialismo e mantendo a enorme importância do “amor divino, eterno e transcendente, que Jesus Cristo nos revela por intermédio da sua humanidade”:

Sabemos que os progressos sociais e culturais positivos, alcançados por um povo, assim como os louváveis esforços em ordem a uma justa e equitativa distribuição das riquezas materiais, não podem saciar as aspirações mais profundas que residem no coração de cada homem e de cada mulher; é o amor divino, eterno e transcendente, que Jesus Cristo nos revela por intermédio da sua humanidade, o único que é capaz de saciar completamente estes anseios. A Igreja deseja ser, também em Cuba, anunciadora fiel e verdadeira deste Amor.

(Cardeal Sepe. Homilia na Catedral de Havana por ocasião da inauguração da casa da Ordem do Santíssimo Salvador de Santa Brígida. Havana, 2003.)

Nota: esta postagem foi originalmente publicada no meu antigo blog Marxismo Online no dia 4 de julho de 2012.