A Virgem Maria e a paz

Hoje, 1.º de janeiro, é dia de celebrar a Virgem Maria, Mãe de Deus, e é também Dia Mundial da Paz. Curiosos os caminhos da história que colocaram no mesmo dia a celebração daquela que é, pela maternidade, a Rainha da Paz, e a festa daqueles que querem um mundo de paz e de justiça.

Assim profetizou Miqueias, há milhares de anos:

Deus deixará seu povo ao abandono, até ao tempo em que uma mãe der à luz; e o resto de seus irmãos se voltará para os filhos de Israel. Ele não recuará, apascentará com a força do Senhor e com a majestade do nome do Senhor seu Deus; e ele será a paz. [Mq 5,2-3a.4a]

“O resto de seus irmãos se voltará para os filhos de Israel”, porque Jesus Cristo não veio fazer distinção entre Israel e Judá, mas veio buscar suas ovelhas no aprisco de todos os povos (Jo 10,16), e porque, recebendo d’Ele a filiação divina, “já não há judeu, nem grego”, mas somos um só em Cristo (Gl 3,28s). Como alguém, nessa situação, poderia buscar a guerra, a iniquidade, a discórdia?

Infelizmente, isso existe, pois nem todos reconhecem que Deus veio ao mundo para nos tornar seus filhos, e mesmo muitos que professam essa verdade com a boca, não o fazem com o espírito e com as obras. É por isso que a Igreja, mesmo na solenidade da Virgem Maria, Mãe de Deus, não esquece da buscar a paz, e, com sua doutrina social e o Conselho Pontifício “Justiça e Paz” (e as comissões episcopais), continua perseguindo uma sociedade que corresponda aos ensinamentos evangélicos.

Assim, nesse novo ano, desejo a todos os leitores que celebrem a maternidade divina de Maria, vivam conformes a Jesus Cristo – Caminho, Verdade e Vida – e busquem sempre a paz entre os irmãos. Amém!

Advento

Já chegamos à metade da primeira semana do advento. Novo tempo para a Igreja, que inicia mais um ano litúrgico, e que deve ser novo tempo para cada um de seus membros. Preparamo-nos agora para celebrar a primeira vinda de Jesus Cristo, o Filho de Deus, enquanto aguardamos que retorne em sua glória (Prefácio Eucarístico do Advento I). Espero que tenha ido à missa do domingo passado, primeiro desse novo tempo, e, se você não pôde ir, não tarde em procurar e beber da fonte da vida cristã, a liturgia, o serviço de Deus e dos homens, em especial a Sagrada Eucaristia (CEC, 1069-1070; SC, 7-10).

Se você foi à missa, ouviu a leitura do Evangelho, que diz: “Então, verão o Filho do Homem vir sobre uma nuvem com grande glória e majestade. […] Velai sobre vós mesmos, para que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso do comer, com a embriaguez e com as preocupações da vida; para que aquele dia não vos pegue de improviso. Como um laço cairá sobre aqueles que habitam a face de toda a terra. Vigiai, pois, em todo o tempo e orai, a fim de que vos torneis dignos de escapar a todos esses males que hão de acontecer, e de vos apresentar de pé diante do Filho do Homem.” (Lc 21,27.34-36)

E como poderemos nos apresentar de pé diante de Cristo, quando retornar em sua glória? Sendo “imitadores de Deus, como filhos muito amados” (Ef 5,1) e membros de seu corpo, que é a Igreja. “Certamente, ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e a trata, como Cristo faz à sua Igreja – porque somos membros de seu corpo.” (Ef 5,29s). São Cirilo de Jerusalém, falando sobre recebermos o corpo e o sangue de Cristo na eucaristia, disse que o fiel se torna, “tomando o corpo e o sangue de Cristo, concorpóreo e consangüíneo com Cristo. Assim nos tornamos portadores de Cristo (cristóforos), sendo nossos membros penetrados por seu corpo e sangue. Desse modo, como diz o bem-aventurado Pedro, ‘tornamo-nos partícipes da natureza divina’ [2Pd 1,4].” (S. Cirilo de Jerusalém, quarta catequese mistagógica, 3.)

Dessa maneira, somos conformados à imagem de Cristo, para o que fomos predestinados (Rm 8,29), e ouvimos as palavras do apóstolo:

Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento de vossa alma, e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade. [Ef 4,21-24]

“O Deus da paz vos conceda santidade perfeita. Que todo o vosso ser, espírito, alma e corpo, seja conservado irrepreensível para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo!” (1Ts 5,23)

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil

O Brasil tem uma excelente padroeira: a Virgem Maria, mãe de Deus e nossa mãe. No momento escolhido por Deus para unir-se à humanidade, preparou para si uma mãe que lhe fosse digna, essa mulher, chamada Maria (como tantas outras já em seu tempo), concebida imaculada, isto é, sem a mancha do pecado original, para que fosse sacrário vivo do Filho do Altíssimo.

Na cruz, Jesus Cristo entregou-a a nós na pessoa de São João para que a venerássemos como digna mãe de Deus e exemplo de santidade, mas também para que cuidasse de nós como de filhos: “Quando Jesus viu a sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe” (Jo 19,26-27a).

Não muito tempo antes da independência do Brasil, quando já a revolta contra a coroa portuguesa aumentava, apareceu em São Paulo uma imagem da Virgem Maria. Essa imagem aos poucos foi se tornando célebre graças aos milagres a seu redor, como sinal de que o Brasil tinha uma poderosa protetora. Eis a história de Nossa Senhora Aparecida, retirada da Liturgia das Horas:

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil

Na segunda quinzena de outubro de 1717, três pescadores, Filipe Pedroso, Domingos Garcia e João Alves, ao lançarem sua rede para pescar nas águas do Rio Paraíba, colheram a Imagem de Nossa Senhora da Conceição, no lugar denominado Porto do Itaguassu. Filipe Pedroso levou-a para sua casa conservando-a consigo até 1732, quando a entregou a seu filho Atanásio Pedroso. Este construiu um pequeno oratório para rezar o terço. Devido à ocorrência de milagres, a devoção a Nossa Senhora começou a se divulgar, com o nome dado pelo povo de Nossa Senhora Aparecida. A 26 de julho de 1745 foi inaugurada a primeira Capela. Como esta, com o passar dos anos, não comportasse mais o número de devotos, iniciou-se em 1842 a construção de um novo templo inaugurado a 8 de dezembro de 1888. Em 1893, o Bispo diocesano de São Paulo, Dom Lino Deodato Rodrigues de Carvalho, elevou-o à dignidade de “Episcopal Santuário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida”. A 8 de setembro de 1904, por ordem do Papa Pio X, a Imagem milagrosa foi solenemente coroada, e a 29 de abril de 1908 foi concedido ao Santuário o título de Basílica menor. O Papa Pio XI declarou e proclamou Nossa Senhora Aparecida Padroeira do Brasil a 16 de julho de 1930, “para promover o bem espiritual dos fiéis e aumentar cada vez mais a devoção à Imaculada Mãe de Deus”. A 5 de março de 1967 o Papa Paulo VI ofereceu a “Rosa de Ouro” à Basílica de Aparecida. Em 1952 iniciou-se a construção da nova Basílica Nacional de Nossa Senhora Aparecida, solenemente dedicada pelo Papa João Paulo II a 4 de julho de 1980.

Oração

Ó Deus todo-poderoso, ao rendermos culto à Imaculada Conceição de Maria, Mãe de Deus e Senhora nossa, concedei que o povo brasileiro, fiel à sua vocação e vivendo na paz e na justiça, possa chegar um dia à pátria definitiva. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, rogai por nós!

O sacramento do matrimônio

As leituras do último domingo estão voltadas para o sacramento do matrimônio e para a família. No texto do Evangelho segundo S. Marcos (10,2-16), Jesus Cristo estabelece claramente qual a vontade divina, expressa já na criação do mundo:

Chegaram os fariseus e perguntaram-lhe, para o pôr à prova, se era permitido ao homem repudiar sua mulher. Ele respondeu-lhes: “Que vos ordenou Moisés?”. Eles responderam: “Moisés permitiu escrever carta de divórcio e despedir a mulher”. Continuou Jesus: “Foi devido à dureza do vosso coração que ele vos deu essa Lei; mas, no princípio da Criação, Deus os fez homem e mulher. Por isso, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher; e os dois serão senão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. [cf. Gn 1,27;2,24] Não separe, pois, o homem o que Deus uniu”.

Em casa, os discípulos fizeram-lhe perguntas sobre o mesmo assunto. E ele disse-lhes: “Quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa com outro, comete adultério”.

A mensagem é clara – e prossegue com a benção das crianças, que são elas mesmas a benção do casamento (Gn 1,28; Sl 126).

Mas, a mensagem da Revelação vai além. Primeiramente, como instrumento da graça de Deus: “Porque o marido que não tem a fé é santificado por sua mulher; assim como a mulher que não tem a fé é santificada pelo marido que recebeu a fé” (1Cor 7,14). O matrimônio é, portanto, sacramento, pois sinal vivo e eficaz da graça, instituído pelo Verbo Eterno, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

Em segundo lugar, por semelhança e com grande beleza, a Igreja é esposa de Cristo:

Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim os maridos devem amar as suas mulheres, como a seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Certamente, ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e trata, como Cristo faz à sua Igreja, porque somos membros de seu corpo. [Ef 5,25-30]

O matrimônio aparece dessa maneira também no Apocalipse de S. João (19,7-9), quando nos são narradas as núpcias do Cordeiro com a Esposa vestida com o “linho puríssimo e resplandecente” que são as boas obras dos santos. “Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro”, são palavras autênticas de Deus. Alegremo-nos, pois todos nós somos convidados (Mt 22,9) – e o matrimônio é sua antecipação (Catecismo da Igreja Católica, 1642).

Repartir a sabedoria

Hoje é dia de comemorar São João Crisóstomo (c. 349-407), bispo e doutor da Igreja. Não teve medo de promover a reforma dos costumes, tanto do clero quanto dos fiéis. Recebeu a oposição da corte imperial e de inimigos pessoais, o que lhe rendeu duas vezes o exílio. Segundo a liturgia das horas, “a sua notável diligência e competência na arte de falar e escrever, para expor a doutrina católica e formar os fiéis na vida cristã, mereceu-lhe o apelativo de Crisóstomo, ‘boca de ouro’.”

No comum dos doutores da Igreja para o ofício das laudes (oração do início do dia, na liturgia das horas), lemos do livro da Sabedoria (Sb 7,13-14)

Aprendi a Sabedoria sem maldade e reparto-a sem inveja; não escondo a sua riqueza. É um tesouro inesgotável para os homens; os que a adquirem atraem a amizade de Deus, porque recomendados pelos dons da instrução.

Ao rezar o ofício, não pude deixar de lembrar de imediato as palavras de Cristo (Mt 5,14-16):

Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.

A sabedoria que Deus nos dá e que devemos repartir nos foi dada toda e diretamente por Ele (Jo 15,15):

Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai.

Que nossas obras e nossas ações sejam um compartilhar a sabedoria que Deus nos dá em sua Igreja, na vida dos santos e nos dons do Espírito. Que, nesse mundo que reduziu o homem à mera racionalidade, mas que não houve nem sequer o que a razão diz (Rm 1,18ss), possamos espalhar a sabedoria da fé!

Pelos políticos – intenções do papa para setembro

É com um pouco de atraso, mas, no fim das contas, em uma data muito propícia, que falo das intenções gerais do papa para este mês: pelos políticos. Hoje é dia de comemorar a formação política do Brasil, com seus percalços e suas conquistas, e é também mês de campanha eleitoral nos municípios. Tempo adequado para rezarmos pelos nossos representantes nos governos e casas legislativas.

“O que se exige dos administradores é que sejam fiéis”, diz São Paulo na leitura da missa de hoje (I Cor 4,2). Fiéis, é claro, àqueles que lhes conferem o poder da administração. Como na parábola do dinheiro emprestado (Lc 19,11ss), em que Jesus Cristo nos ensina que devemos trabalhar, administrando os dons que nos deu, para que venha o seu Reino a muitos, também os governantes, a quem confiamos a administração das coisas públicas, devem agir para a expansão do bem comum.

Mais especificamente, o papa ora este mês para que os políticos hajam com honestidade, integridade e amor à verdade. Deus é a verdade (Jo 14,6) e nos ama integralmente, a ponto de oferecer-se, na pessoa do Filho, pelo nosso bem (Jo 3,16). A verdade liberta o homem (Jo 8,32), e o serviço à verdade é o serviço ao desenvolvimento humano integral (Caritas in veritate, 9).

Rezemos, então, para que, no amor e na verdade, os políticos busquem o desenvolvimento de cada homem e de cada mulher, bem como da humanidade inteira. Que os eleitores, em especial nos municípios brasileiros, saibam escolher bem seus representantes, e que estes sejam bons administradores do bem comum. Que os governantes nos estados, no Distrito Federal e na República promovam a verdadeira realização humana. E que, especialmente no plano internacional, as “estéreis oposições de forças dêem lugar à colaboração amiga, pacífica e desinteressada, a favor de um desenvolvimento solidário da humanidade, onde todos os homens possam realizar-se” (Populorum progressio, 84). Amém.

A doutrina social da Igreja e as ciências

Quem se desse ao trabalho de ouvir atentamente a exortação do papa Bento XVI ao diálogo entre marxismo e cristianismo talvez se perguntasse: “isso é possível, a Igreja tem abertura ao conhecimento científico da sociedade?” A pergunta faria sentido, porque o marxismo pretende ser um conhecimento científico das relações sociais a partir de suas bases materiais. Por outro lado, a Igreja e os marxistas por mais de um século se estranharam, excluindo-se mutuamente, em razão de suas escolhas epistemológicas.

É preciso que se diga: marxismo e teologia são abordagens muito diversas da realidade. Uma parte do material, tomando-o como pressuposto, a outra, parte do “motor imóvel”, do Deus criador e redentor, eterno pressuposto. A possibilidade de diálogo reside na capacidade de ambos os saberes reconhecerem seus limites: de um lado, um saber que se aplica adequadamente às relações sociais, ao trabalho, à propriedade, à técnica; de outro, um saber que se aplica adequadamente ao homem ético, na medida em que lhe dá um sentido, um princípio e uma finalidade. Ambos, porém, buscam uma sociedade justa e fraterna.

A encíclica Caritas in veritate é basilar nessa compreensão, e ainda aborda um problema comum enfrentado por teologia e marxismo: o relativismo pós-moderno. É preciso dizer que ambas as abordagens buscam vigorosamente a verdade, cada uma a seu modo. Na revolução epistemológica do século XIX, com o surgimento das modernas ciências humanas e das grandes teorias da história, precisaram se afirmar e se excluíram mutuamente, mas o momento atual reforça as semelhanças entre as duas, especialmente a possibilidade de se conhecer a verdade, ainda que limitada à atual condição humana, possibilidade essa frontalmente combatida pela época em que “cada um tem sua verdade”.

A referida encíclica, já em seus primeiros parágrafos, enfatiza vigorosamente que a caridade (“graça”, “dom”, e portanto “amor gratuito”, “doação de si”) não pode ser separada da verdade, sem a qual se converte em sentimentalismo – “na verdade, a caridade reflete a dimensão simultaneamente pessoal e pública da fé no Deus bíblico, que é conjuntamente ‘Agápe’ e ‘Lógos’: Caridade e Verdade, Amor e Palavra.” (n.º 3) Depois diz: “a fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8,32) e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral.” (n.º 9) A teologia e o materialismo histórico, portanto, como ciência, estão a serviço da mesma verdade, ainda que por vias diversas. É por isso que a encíclica Caritas in veritate assim conclui sua parte introdutória:

Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio: é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente se encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da sociedade dos homens e dos povos. [n.º 9]

Isso vai plenamente ao encontro de toda a doutrina social da Igreja, cujo compêndio assim expressa:

76. A doutrina social da Igreja se vale de todos os contributos cognoscitivos, qualquer que seja o saber de onde provenham, e tem uma importante dimensão interdisciplinar: “Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, econômicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas provêm” [João Paulo II, Centesimus annus, 59] A doutrina social vale-se dos contributos de significado da filosofia e igualmente dos contributos descritivos das ciências humanas.

77. Essencial é, em primeiro lugar, o contributo da filosofia, já mencionado ao se evocar a natureza humana como fonte, e a razão como via cognoscitiva da própria fé. Mediante a razão, a doutrina social assume a filosofia na sua própria lógica interna, ou seja, no argumentar que lhe é próprio.

[…]

78. Um significativo contributo à doutrina social da Igreja provém das ciências humanas e sociais: em vista da parte de verdade de que é portador, nenhum saber é excluído. A igreja reconhece e acolhe tudo quanto contribui para a compreensão do homem na sempre mais extensa, mutável e complexa rede das relações sociais. Ela é consciente do fato de que não se chega a um conhecimento profundo do homem somente com a teologia, sem a contribuição de muitos saberes, aos quais a própria teologia faz referência.

A abertura atenta e constante às ciências faz com que a doutrina social da Igreja adquira competência, concretude e atualidade. Graças a elas, a Igreja pode compreender de modo mais preciso o homem na sociedade, falar aos homens do próprio tempo de modo mais convincente e cumprir de modo eficaz a sua tarefa de encarnar, na consciência e na sensibilidade social do nosso tempo, a palavra de Deus e a fé, da qual a doutrina social “parte”.

Este diálogo interdisciplinar compele também as ciências a colher as perspectivas de significado, de valor e de empenhamento que a doutrina social desvela e “a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude de sua vocação” [idem, 54].

É claro que o chamamento ao diálogo não será ouvido de igual maneira por todos os cristãos e em todas as sociedades – afinal, a Igreja Católica tem mais de 1,3 bilhão de membros em todos os cantos do mundo -, mas está posto. É a hora de os marxistas fazerem valer o que disse Lênin em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo: “o marxismo nada tem que se assemelhe a ‘sectarismo’ no sentido de uma doutrina fechada sobre si, surgida à margem da grande estrada do desenvolvimento da civilização universal”. É hora de responder o chamamento ao diálogo.

Cardeal Kurt Koch avalia o Vaticano II

O artigo abaixo, publicado pela agência de notícias católica Zenit, é um interessante contraponto aos que tentam colocar em oposição os Concílios Vaticano II e de Trento (ou mesmo o Vaticano I). Essas pessoas muitas vezes se opõem a toda a tradição sobre a autoridade dos concílios (e, portanto, do papa e dos bispos em comunhão com ele) tentando defender a “tradição” como eles preferem entendê-la. Nos artigos que já publiquei sobre tais concílios, tentei analisar essa questão, mas, ainda que procurasse alguma distinção ao menos na formulação das verdades por eles confirmadas, encontrei somente uma semelhança impressionante.

Veja mais aqui no Caritas in Veritate nos temas Concílio Vaticano II e Concílio de Trento.

Cardeal Kurt Koch avalia o Vaticano II

Precisações favorecem o diálogo com os críticos do concílio

ROMA, segunda-feira, 6 de agosto de 2012 (ZENIT.org) – Para tentar entender a importância e a oportunidade do Concílio Vaticano II, o cardeal Kurt Koch, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, conversou com a agência Apic-Kipa, em entrevista reproduzida pelo L’Osservatore Romano neste último 3 de agosto.

Sobre as pessoas que afirmam que o concílio foi um erro, o cardeal observa: “A noção de que um concílio também pode incorrer no erro se enraíza em Martinho Lutero. Considerando só isto, os tradicionalistas deveriam se perguntar onde é que eles se posiconam de fato”.

A respeito das críticas de quem contrapõe o Concílio de Trento ao Vaticano II, o presidente do Pontifício Conselho afirma que “o Vaticano II adotou quatro constituições, nove decretos e três declarações. Em termos puramente formais, podemos ver a diferença entre esses três gêneros. Então já surge um problema quando se considera que o Concílio de Trento (1545-1563) só publicou decretos, mas nenhuma constituição”. E complementa: “Ninguém afirmaria que o Concílio de Trento foi de um nível inferior. Portanto, do ponto de vista meramente formal, podemos encontrar diferenças, mas não podemos realmente aceitar diferenças no caráter do conteúdo desses documentos”.

Quanto às críticas em relação ao ecumenismo, o cardeal Koch salienta que “não é um tema secundário, mas central no concílio, como já lembrou João Paulo II. É por isso que hoje ele tem que ser um tema central na Igreja”.

Ainda neste sentido, Koch enfatiza que o decreto conciliar sobre o ecumenismo, a Unitatis Redintegratio, baseia os seus princípios na constituição dogmática sobre a Igreja, a Lumen Gentium. “Paulo VI ressatou firmemente, na época da promulgação deste decreto, que ele interpreta e explica a constituição dogmática sobre a Igreja”. O cardeal reitera também, no contexto ecumênico, que “a declaração conciliar Nossa Aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, em especial com o judaísmo, igualmente se fundamenta na constituição dogmática sobre a Igreja”.

Koch termina a entrevista anunciando que, para 2017, aniversário de quinhentos anos da Reforma, o Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos está preparando um comunicado conjunto com a Federação Luterana Mundial.

Trad.ZENIT

A historicidade da doutrina social da Igreja

Poderíamos talvez resumir os pronunciamentos da Igreja a dois tipos: os dogmáticos e os pastorais. Os primeiros tratam da verdade revelada, portanto imutável como a própria Verdade (Catecismo da Igreja Católica – CIC –, 88-90). Os últimos tratam de conduzir o rebanho de Cristo neste mundo de forma a nutri-lo com o alimento espiritual necessário à longa viagem rumo aos prados celestiais, permanecendo sempre no reto caminho da Verdade (CIC, 888-892). A doutrina social da Igreja se situa principalmente no segundo tipo de pronunciamento, o qual sempre tem como princípio a Verdade, mas como destino uma situação concreta (CIC, 2419 e seguintes). Trata-se de uma exposição mais ou menos contínua de princípios para a avaliação dessas situações, mas também da articulação entre esses princípios e a realidade do momento histórico em questão. Nesse sentido, considero bastante interessante o que escreveu Ildefonso Camacho a esse respeito em seu livro Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica (São Paulo: Loyola, 1995. p. 11):

Começarei narrando um episódio, que me ocorreu há mais de quinze anos, para esclarecer o enfoque dado a este livro. Um professor amigo, que ensinava filosofia em um instituto, convidou-me a expor a doutrina da Igreja sobre os sistemas econômicos. Durante o diálogo com os alunos, um deles me perguntou sobre a impossibilidade de um cristão votar no partido socialista. Embasava a sua posição na condenação do socialismo pronunciada por Leão XIII em sua encíclica Rerum Novarum. Tentei explicar-lhe que o julgamento que podemos fazer nos dias atuais sobre o socialismo não poderia ser baseado, sem mais nem menos, naquele texto de 1891, porque entre o socialismo que ali se contempla e o de hoje existem diferenças substanciais. Não era o julgamento que aquele rapaz fazia que me preocupava. Preocupavam-me, antes, as razões em que ele se baseava e o pressuposto de que qualquer afirmação do magistério social adquira um valor permanente, independente da época em que fora pronunciada.

Esse fato mostra o perigo, freqüente entre os crentes, de cair em verdadeiros anacronismos ao empregar os textos da Doutrina Social da Igreja, tirando-os de seu contexto e atribuindo-lhes um caráter universal, à margem dos condicionamentos históricos. Deixar-se levar por esta maneira de interpretar a Doutrina Social é um dos mais perniciosos serviços que já se prestou, e se continua prestando, ao magistério social.

Por isso é que este livro pretende, precisamente, estudar a Doutrina Social da Igreja em um diálogo contínuo com a história. Em um primeiro momento poderá parecer que, por este caminho, renunciaremos a uma síntese de pensamento sistemático e de validade duradoura, para cair na dispersão de estudos isolados, que percorrem documentos e acumulam textos sem qualquer conexão. Esperamos que, ao final destas páginas, a impressão seja a oposta: que o longo caminho que vamos percorrer vá depositando um fundo doutrinal e, sobretudo, uma disposição de fé para enfrentar as situações sempre dinâmicas da vida social, política e econômica.

Respeito pelos presos

A intenção de oração do papa para este mês de agosto é pelo respeito aos presos. Não é um tema simples, pois em nossa sociedade prevalece o espírito de vingança, e a cada crime surge o clamor por penas severas, chegando até a se exigir a pena de morte. Cada vez que alguém se levanta contra a barbárie prevalecente nos presídios brasileiros, diz-se logo que ele “quer transformar presídio em hotel”, ou que “bandido bom é bandido morto”. Não é, porém, essa atitude que Deus quer de nós.

Caim matou Abel, seu irmão. Cometeu um grave pecado. Quando o Senhor proferiu sua pena, Caim exclamou: “A minha culpa é grande demais para obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro a encontrar-me matar-me-á.” Contudo, Deus, que é Deus da vida, assim respondeu: “Não, se alguém matar Caim, será castigado sete vezes mais.” (Gn 4)

Talvez nada mais fosse preciso dizer, mas o Senhor diz, e assim o apóstolo São Paulo nos exorta: “Não vos vingueis uns dos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A mim a vingança; a mim exercer a justiça, diz o Senhor” (Rm 12,19, citando Dt 32,35).

O respeito à pessoa humana

O Concílio Vaticano II, que este ano completa o jubileu de ouro de sua abertura, assim nos diz sobre a dignidade do ser humano em sua constituição pastoral Gaudium et Spes:

27. Descendo às conseqüências práticas e mais urgentes, o Concílio inculca o respeito ao homem; que cada um respeite o próximo como “outro eu”, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente, a fim de não imitar aquele rico que não teve nenhum cuidado com o pobre Lázaro.

Sobretudo nos nossos tempos, temos a imperiosa obrigação de nos tornarmos próximos de qualquer homem indistintamente; se ele se nos apresenta, devemos servi-lo ativamente, quer seja um velho abandonado por todos, ou um operário estrangeiro injustamente desprezado, ou um exilado, ou uma criança nascida de uma união ilegítima sofrendo imerecidamente por um pecado que não cometeu, seja um faminto que interpela a nossa consciência recordando a voz do Senhor: “Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos a mim é que fizestes” (Mt 25,40).

Além disso, tudo o que atenta contra a própria vida, como qualquer espécie de homicídios, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio voluntário, tudo o que viola a dignidade humana, como as mutilações, as torturas físicas ou morais e as tentativas de dominação psicológica; tudo o que ofende a dignidade humana, como as condições infra-humanas de vida, os encarceramentos arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição, o mercado de mulheres e jovens e também as condições degradantes de trabalho, que reduzem os operários a meros instrumentos de lucro, sem respeitar-lhes a personalidade livre e responsável: todas essas práticas e outras semelhantes são efetivamente dignas de censura. Enquanto elas inficionam a civilização humana, desonram mais os que se comportam desta maneira, do que aqueles que padecem tais injúrias. E contradizem sobremaneira a honra do Criador.

Note que “as torturas físicas ou morais e as tentativas de dominação psicológica, […] o encarceramento arbitrário” são expressamente condenadas pelo Concílio, juntamente com todas as práticas semelhantes que atentam contra a dignidade de cada homem ou mulher. Aqueles que estão sujeitos a esses abusos, ainda que culpados de algum crime, são verdadeiras vítimas do que se lhes faz.

Apóstolos, papas, mártires

Lembremos de quantos mártires há entre nós, membros do corpo de Cristo, a Igreja Católica. Todos os apóstolos. Os primeiros papas. Dois séculos de cristãos encarcerados e jogados às feras para a diversão da perversa sociedade romana. Ainda hoje, quantos não perdem a vida em defesa da fé? Muitos desses, se não a grande maioria, passou pelo cárcere antes de enfrentar a morte. Quando São Pedro esteve preso em Jerusalém, não foi ouvindo a oração da Igreja que Deus o libertou? (At 12,1-18) Assim devemos orar por nossos irmãos presos, sejam eles inocentes como Pedro, para que sejam libertados, sejam eles pecadores, para que se convertam.

É certo que esse destino ainda espera muitos homens justos, pois Cristo alerta sua Igreja e a prepara para a perseguição: “eis que vos envio como cordeiro entre lobos” (Lc 10,3). “Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, pois prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas. Cuidai-vos dos homens. Eles vos levarão aos seus tribunais e sereis açoitados com varas nas suas sinagogas. Sereis por minha causa levados diante dos governadores e dos reis: servireis assim de testemunho para eles e para os pagãos. Quando fordes presos, não vos preocupeis nem pela maneira com que haveis de falar, nem pelo que haveis de dizer: naquele momento vos será inspirado o que haveis de dizer. Porque não sereis vós que falareis, mas é o Espírito de vosso Pai que falará em vós.” (Mt 10,16-20)

Cristo, preso

E qual seria o caminho preparado para o Cordeiro de Deus, se não o do abatedouro? Era preciso que fosse levantado na cruz “para que todo homem que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3,14-15). E isso não aconteceu sem que antes fosse preso e barbaramente torturado.

O Verbo de Deus, que é Deus, encarnado e assim unido à humanidade, “preso, morto e sepultado”, é este o “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,1-36; símbolo apostólico; Catecismo da Igreja Católica, 464, 480, 599-623). É tão grande a união de Cristo com a humanidade, que permite a São Paulo dizer (Rm 6,3-11):

Ou ignorais que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova. Se fomos feitos o mesmo ser com ele por uma morte semelhante à sua, o seremos igualmente por uma comum ressurreição. Sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com ele, para que seja reduzido à impotência o corpo (outrora) subjugado ao pecado, e já não sejamos escravos do pecado. (Pois quem morreu, libertado está do pecado)

Ora, se morremos com Cristo, cremos que viveremos também com ele, pois sabemos que Cristo, tendo ressurgido dos mortos, já não morre, nem a morte terá mais domínio sobre ele. Morto, ele o foi uma vez por todas pelo pecado: porém, está vivo, continua vivo para Deus! Portanto, vós também considerai-vos mortos ao pecado, porém vivos para Deus, em Cristo Jesus.

“A um desses meus irmãos mais pequeninos”

É claro que nem todo aquele que está preso é inocente como Jesus. Contudo, o próprio Deus se sujeitou à prisão, ao suplício e à morte para nos libertar do pecado. Com Cristo fomos presos, supliciados, mortos e ressuscitados. Vivemos agora uma vida nova. Contudo, não podemos nos esquecer nem dos inocentes, nem dos criminosos na prisão.

“Estava na prisão e viestes até mim. […] todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes. […] na prisão e não me visitastes […] todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.” (Mt 25,36-45) É esse o critério que será usado em nosso julgamento: por amor a Deus, fizemos o bem para os mais frágeis? Ou então os deixamos desprotegidos? Podemos fazer o bem a esses pequeninos irmãos simplesmente dando-lhes condições dignas para pagar por seus crimes, para se educarem e se recuperarem para a vida em sociedade, e, principalmente, para a conversão. Afinal, que foi que disse Nosso Senhor Jesus Cristo ao ladrão arrependido? “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”. (Lc 23,43)