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Hagia Sofia se torna mesquita

Interior de Santa Sofia, exibindo os caracteres cristãos e islâmicos de sua história. Foto: Sudharsan.Narayanan.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, decretou nula a decisão do coronel Ataturk, pai do moderno Estado turco, que em 1934 transformou a antiga catedral de Hagia Sofia (Santa Sabedoria), de mesquita em museu. Para o patriarca ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu, Santa Sofia, localizada junto ao estreito do Bósforo, era um local “no qual Oriente e Ocidente se abraçam”. Com isso, a basílica volta a ser uma mesquita, e as orações muçulmanas voltarão a ser realizadas lá daqui a duas sextas-feiras. A decisão foi lamentada hoje pelo papa Francisco na oração do Ângelus: “penso em Santa Sofia e fico muito triste”. O diretor-geral da Unesco, Audrey Azoulay, expressou seu profundo pesar pela decisão das autoridades turcas:

Hagia Sofia é uma obra-prima arquitetônica e um testemunho único das interações entre Europa e Ásia ao longo dos séculos. Seu status como museu reflete a natureza universal dessa herança, e faz dela um símbolo poderoso pelo diálogo.

O escritório da ONU para Educação, Ciência e Cultura também afirmou que” a participação inclusiva e equitativa das comunidades envolvidas é necessária para proteger essa herança e ressalta sua singularidade e seu significado”. A Unesco apelou ao diálogo sem demora, o que é inerente ao espírito da Convenção do Patrimônio Mundial.

Períodos de expansão do Império Turco-Otomano. Fonte: Nedim Ardoğa/Wikimedia.

A transformação da catedral ortodoxa em mesquita ocorreu após a conquista de Constantinopla pelo Império Turco-Otomano em 1453. Constantinopla, também chamada Bizâncio, era até então uma cidade cristã, capital do Império Romano do Oriente (ou Império Bizantino). Seu patriarca é o principal patriarca ortodoxo. Desde então até o século XIX, o Império Turco-Otomano foi o principal fantasma a assombrar a Europa cristã, tendo sido contido a duras penas pelo Império Austro-Húngaro e, finalmente, derrotada pelo Império Russo na Guerra da Crimeia (1853-1856) e, ao final da I Guerra Mundial (1914-1918), esfacelou-se, perdendo territórios que ainda mantinha no Oriente Médio – pouco antes, havia perdido seus territórios nos Bálcãs e na Líbia. Sua última conquista foi a província de Hatay, em 1939, que pertenceu à colônia francesa na Síria após a guerra.

Galeria em Santa Sofia. Foto: Serdar Gurbuz.

Hoje, o que se vê é a expansão da influência turca através do apoio a militantes islamitas em lugares como a Síria e a Líbia, além de um discurso nacionalista que bem poderia plagiar o slogan de Donald Trump: “make Turkey great again”. Na Síria, os turcos impediram que forças curdas e do governo sírio conquistassem parte do território do Estado Islâmico da fronteira entre os dois países até a cidade síria de Al Bab, submeteram a província de Afrin (que estava então sob domínio curdo) e também partes setentrionais das províncias de Raqqa e Hasakah, além de protegerem os rebeldes islamitas em Idlib, o que vai desde a antiga Al Qaeda na Síria (atual Hayat Tahrir al Sham – HTS) ao grupos afiliados ao Estado Islâmico. Na Líbia, entraram na guerra civil apoiando o governo de Tripoli contra o Exército Nacional Líbio (LNA) – chegaram a enviar rebeldes da Síria para a Líbia. Aqui em Visão Católica, a Turquia tem sido tema rotineiro das notícias graças a essas intervenções pró-islamitas.

Também não faltam exaltações ao califado otomano, e Erdogan tem até reforçado as ligações da atual Turquia com o antigo império: “a essência é a mesma, a alma é a mesma, muitas instituições também são as mesmas”, disse ele, referindo-se ao império islâmico. O califado, cabe lembrar, é uma instituição de governo islâmico que se estende a toda a “comunidade” muçulmana (ummah) em bases religiosas. A presente reconversão de Hagia Sofia de museu em mesquita parece reforçar essa ligação. Durante os anos finais desse mesmo Império Turco-Otomano ocorreu o genocídio de cristãos armênios e assírios, que a Turquia teima em não reconhecer – e até se faz de vítima quando autoridades mundo afora reafirmam essa realidade.

(Foto em destaque: exterior de Santa Sofia por Antti T. Nissinen)

Turquia e Síria em confronto

Em meio à atual ofensiva do governo sírio contra os rebeldes islamitas em Idlib e Alepo, além da rápida movimentação de tropas turcas montando novos “postos de observação” na zona ainda controlada pela rebeldes, o exército sírio bombardeou há cerca de meia hora um posto de observação turco recém instalado em Tarnaba, próximo a Saraqib, e a Turquia neste momento está retaliando.

Houve a divulgação recente, por parte da Rússia, de que a Turquia teria concordado em deixar o governo da Síria ocupar seu próprio território (sírio) até a rodovia M5, que liga a capital, Damasco, a Alepo, no norte do país, passando pela província de Idlib, na maior parte dominada pelos rebeldes salafistas (da mesma ideologia do Estado Islâmico e da Al Qaeda). Contudo, parece que os turcos não previram o rápido avanço do governo sírio, talvez acreditando em desgastar as tropas do país vizinho.

A disputa atual se dá em torno da cidade de Saraqib, na província de Idlib, onde a rodovia M5, que vai do Sul ao Norte, cruza com a M4, de Leste a Oeste. Neste fim de semana houve movimentos erráticos de tropas turcas tentando estabelecer novos postos de observação para garantir uma paz há muito frustrada. Os acordos de cessar-fogo previam que não seriam aplicados a grupos terroristas, como o HTS, sucessor da Al Qaeda na Síria – que, no entanto, domina a região controlada pelos rebeldes.

(Foto em destaque: rebeldes sírios apoiados pela Turquia. Via Twitter de @SaadEdin_souma em out. 2019)

Síria: Turquia prestes a atacar curdos

Mobilização turca ao norte da região dominada pelos curdos na Síria. (Foto via Mete Sohtaoğlu)

A situação está prestes a se deteriorar no noroeste da Síria, região hoje dominada pelas Forças Democráticas da Síria (SDF), lideradas pelos curdos. A Turquia vem enviando crescentes quantidades de material bélico, e vem discursando no sentido de criar uma “faixa segura” na fronteira com a Síria, isto é, em expulsar os militantes das Unidades de Proteção Popular curdas (YPG), ligadas ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), proscrito na Turquia.

Noroeste da Síria. Amarelo: SDF; vermelho: governo sírio; verde: ocupação turca e rebeldes apoiados pela Turquia. (Mapa: Live Universal Awaranes Map)

A região em questão é limitada ao norte e ao oeste pela Turquia, e esta já ocupou os limites sul e leste, a pretexto de garantir um acordo de cessar-fogo (no sul) e de expulsar o Estado Islâmico (no leste). Resta apenas uma divisa com o governo sírio a sudeste, único espaço para comunicação e comércio com o resto do país. Essa é a mesma região em que foi derrubado um avião russo que atacava posições de rebeldes turcomanos islamitas em 2015.

Mobilização turca a oeste da Síria. (Foto via Live Universal Awaranes Map)

O Partido Islâmico do Turquestão, aliás, é membro-fundador do Comitê de Libertação do Levante (HTS), antes conhecido como Frente Al Nusra ou Al Qaeda na Síria, que muito recentemente rompeu com a Al Qaeda e prendeu alguns de seus dirigentes. Sob a bandeira das SDF combatem, além dos curdos, grupos árabes e cristãos assírios e siríacos.

Guerra no Oriente Médio recrudesce

A guerra no Oriente Médio (especialmente na Síria) tem recrudescido. No início deste mês, com o início de uma ofensiva do governo sírio para tomar a cidade de Alepo, dezenas de milhares de habitantes fugiram rumo à Turquia, encontrando a fronteira fechada pelos turcos. Um pouco antes, haviam fracassado as negociações de paz, diante da recusa de participação pelos rebeldes. No último sábado (13), doze picapes armadas com metralhadoras pesadas entraram na Síria a partir da Turquia, em uma operação para entrega de suprimentos aos rebeldes – a Síria denunciou a presença de militares turcos, o que foi negado pela Turquia. Também Turquia e Rússia trocam acusações mútuas desde a derrubada de um avião russo que atacava rebeldes na Síria. A região onde o avião foi abatido é povoada por população turcomana, que a Turquia diz estar sendo massacrada (e ameaça agir). No dia 15, mais um hospital da organização Médicos Sem Fronteiras foi bombardeado. As forças envolvidas na guerra trocam acusações entre si (EUA acusam a Rússia e a Síria, que acusam os EUA). No mesmo dia, aviões turcos invadiram o espaço aéreo grego sobre o mar Egeu, perto de ilhas cuja soberania é disputada entre os dois países. Desde julho de 2015, a Turquia vem bombardeando as forças curdas, que combatem com sucesso o Estado Islâmico, com a desculpa de combater terroristas após atentados que vitimaram a população curda e seus aliados internos na Turquia. Os bombardeios foram intensificados desde o sábado (13) – e, na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas da segunda-feira (15), a Turquia foi fortemente criticada pela Rússia, pelo Chipre e pela Síria. Na reunião do dia seguinte (terça, 16), a Turquia foi instada a retirar suas tropas do território iraquiano, “cuja presença mina a soberania do Iraque”. Essa atuação turca contra os curdos, assim como a facilidade que os rebeldes (inclusive o Estado Islâmico) têm para cruzar a fronteira turca com armamentos e tropas leva facilmente à conclusão de que, no fim das contas, a Turquia (sede do último califado) apóia o Estado Islâmico (que proclamou um novo califado). No Iêmen, 14 militares foram mortos por um suicida do Estado Islâmico ontem (17). A situação iemenita, em que Arábia Saudita e Irã, como expoentes do sunismo e do xiismo, se confrontam, contando ainda com a presença da Al Qaeda e do Estado Islâmico, também foi alvo de discussão no conselho de segurança no dia 16. Em Ancara, capital turca, ao menos 5 pessoas morreram e 10 ficaram feridas ontem (17) em uma explosão que teria como alvo instalações militares.

Na Síria, embora nenhum lado possa se declarar inocente de crimes contra a humanidade, chama a atenção a declaração do vigário apostólico de Alepo dos Latinos, dom Georges Abou Khazen, alertando sobre a “‘frente moderada’, que, por ser considerada ‘moderada’, é protegida, defendida e armada [pelos EUA e aliados]. Na realidade, eles não são diferentes em nada dos outros jihadistas [Estado Islâmico e Frente Al Nusra], a não ser no nome”.

Opinião de Visão Católica

Esse extenso relatório demonstra o acerto do papa Francisco e do patriarca Kiril em sua preocupação com a possibilidade de o conflito se tornar uma nova guerra mundial. Na declaração conjunta que firmaram no último dia 12, exortam à busca de uma convivência pacífica e do diálogo inter-religioso. Pedem o auxílio para os cristãos perseguidos e a ação da comunidade internacional. Pedem pela libertação dos metropolitas de Alepo, Paulo e João Ibrahim, e suplicam aos céus para que o Criador proteja sua criação da destruição.

Eis o trecho mais significativo com relação a isso:

7. Determinados a realizar tudo o que seja necessário para superar as divergências históricas que herdámos, queremos unir os nossos esforços para testemunhar o Evangelho de Cristo e o património comum da Igreja do primeiro milénio, respondendo em conjunto aos desafios do mundo contemporâneo. Ortodoxos e católicos devem aprender a dar um testemunho concorde da verdade, em áreas onde isso seja possível e necessário. A civilização humana entrou num período de mudança epocal. A nossa consciência cristã e a nossa responsabilidade pastoral não nos permitem ficar inertes perante os desafios que requerem uma resposta comum.

8. O nosso olhar dirige-se, em primeiro lugar, para as regiões do mundo onde os cristãos são vítimas de perseguição. Em muitos países do Médio Oriente e do Norte de África, os nossos irmãos e irmãs em Cristo vêem exterminadas as suas famílias, aldeias e cidades inteiras. As suas igrejas são barbaramente devastadas e saqueadas; os seus objectos sagrados profanados, os seus monumentos destruídos. Na Síria, no Iraque e noutros países do Médio Oriente, constatamos, com amargura, o êxodo maciço dos cristãos da terra onde começou a espalhar-se a nossa fé e onde eles viveram, desde o tempo dos apóstolos, em conjunto com outras comunidades religiosas.

9. Pedimos a acção urgente da comunidade internacional para prevenir nova expulsão dos cristãos do Médio Oriente. Ao levantar a voz em defesa dos cristãos perseguidos, queremos expressar a nossa compaixão pelas tribulações sofridas pelos fiéis doutras tradições religiosas, também eles vítimas da guerra civil, do caos e da violência terrorista.

10. Na Síria e no Iraque, a violência já causou milhares de vítimas, deixando milhões de pessoas sem casa nem meios de subsistência. Exortamos a comunidade internacional a unir-se para pôr termo à violência e ao terrorismo e, ao mesmo tempo, a contribuir através do diálogo para um rápido restabelecimento da paz civil. É essencial garantir uma ajuda humanitária em larga escala às populações martirizadas e a tantos refugiados nos países vizinhos.

Pedimos a quantos possam influir sobre o destino das pessoas raptadas, entre as quais se contam os Metropolitas de Alepo, Paulo e João Ibrahim, sequestrados no mês de Abril de 2013, que façam tudo o que é necessário para a sua rápida libertação.

11. Elevamos as nossas súplicas a Cristo, Salvador do mundo, pelo restabelecimento da paz no Médio Oriente, que é «fruto da justiça» (Is 32, 17), a fim de que se reforce a convivência fraterna entre as várias populações, as Igrejas e as religiões lá presentes, pelo regresso dos refugiados às suas casas, a cura dos feridos e o repouso da alma dos inocentes que morreram.

Com um ardente apelo, dirigimo-nos a todas as partes que possam estar envolvidas nos conflitos pedindo-lhes que dêem prova de boa vontade e se sentem à mesa das negociações. Ao mesmo tempo, é preciso que a comunidade internacional faça todos os esforços possíveis para pôr fim ao terrorismo valendo-se de acções comuns, conjuntas e coordenadas. Apelamos a todos os países envolvidos na luta contra o terrorismo, para que actuem de maneira responsável e prudente. Exortamos todos os cristãos e todos os crentes em Deus a suplicarem, fervorosamente, ao Criador providente do mundo que proteja a sua criação da destruição e não permita uma nova guerra mundial. Para que a paz seja duradoura e esperançosa, são necessários esforços específicos tendentes a redescobrir os valores comuns que nos unem, fundados no Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.

12. Curvamo-nos perante o martírio daqueles que, à custa da própria vida, testemunham a verdade do Evangelho, preferindo a morte à apostasia de Cristo. Acreditamos que estes mártires do nosso tempo, pertencentes a várias Igrejas mas unidos por uma tribulação comum, são um penhor da unidade dos cristãos. É a vós, que sofreis por Cristo, que se dirige a palavra do Apóstolo: «Caríssimos, (…) alegrai-vos, pois assim como participais dos padecimentos de Cristo, assim também rejubilareis de alegria na altura da revelação da sua glória» (1 Ped 4, 12-13).

13. Nesta época preocupante, é indispensável o diálogo inter-religioso. As diferenças na compreensão das verdades religiosas não devem impedir que pessoas de crenças diversas vivam em paz e harmonia. Nas circunstâncias actuais, os líderes religiosos têm a responsabilidade particular de educar os seus fiéis num espírito respeitador das convicções daqueles que pertencem a outras tradições religiosas. São absolutamente inaceitáveis as tentativas de justificar acções criminosas com slôganes religiosos. Nenhum crime pode ser cometido em nome de Deus, «porque Deus não é um Deus de desordem, mas de paz» (1 Cor 14, 33)

(Imagem em destaque: tanques em frente a mesquita em Azaz, ao norte de Alepo, Síria. Foto: Christiaan Triebert.)